Charlas y Luchas: o impresso e o gesto de resistência

Por Aline Ludmila*

Na tessitura do início do século XX há um fio que entrelaça cinco mulheres anarquistas que viveram em diferentes espaços. Uma costura sensível, traçada nas minúcias da não linearidade, indica como essas diferentes mulheres estavam conectadas por suas histórias de luta. Deixaram um legado, por meio de palavras e gestos de resistência, fundamental para a história do anarcofeminismo. 

Uma dessas mulheres é Juana Rouco Buela: anarquista publicadora transnacional. Nasceu em Madrid e ainda jovem se mudou com a mãe para Buenos Aires. Leu, editou e publicou com a mesma avidez com a qual combateu, mostrando-nos que as palavras e os processos de luta estão interligados. Participou de diversos espaços anarquistas e, no borbulhar das reivindicações por melhores condições de moradia em Buenos Aires, foi uma das atuantes da Greve dos Inquilinos. Em suas memórias, ela descreve: “toda a cidade de Buenos Aires foi tomada, e os anarquistas éramos os que controlávamos esse movimento grandioso.” (Trechos de sua autobiografia. Jornal de Borda, 2019).

A greve resultou em prisões e deportações de anarquistas, dentre eles, a própria Juana. Era 1907, pouco antes de ser deportada em um navio que a levaria a Espanha, companheiras/os de militância e do Centro Feminino Anarquista se despediam de Juana; momento que ela descreve como sendo emocionante. As prisões e as deportações não conseguiram ofuscar o seu ímpeto, portanto, lembremos de sua história. 

Em outro território da Aḿérica, o fio nos conduz até a região desértica do México onde estava Margarita Ortega Valdés: anarquista sagaz na palavra e na guerrilha. Proveniente da elite mexicana, abdicou desse privilégio ao visualizar a forte desigualdade social que assolava o México.  Deixou para trás o marido e, junto de sua filha, enveredou-se pelos caminhos do movimento anarquista magonista em 1910, abraçando a causa revolucionária e as ações realizadas na fronteira entre o México e os Estados Unidos. 

Ensinou-nos que a militância é ampla: fez agitações, atuou em guerrilhas, cuidou de feridos e escreveu palavras combativas em publicações no jornal Regeneración. Em sua publicação Diante Tumba de Madero de maio de 1913,  proclama:  “Tudo o que se opõe à liberdade, igualdade e fraternidade deve desaparecer. Viva a anarquia!” (Jornal de Borda, n. 7, 2019, tradução nossa) 

Em novembro do mesmo ano, diante de uma violenta repressão, Margarita foi fuzilada. Sua memória, bem como a de outras mulheres, não está estampada na história oficial produzida por uma elite dominante, mas está tecida nos fios que conectam as anarquistas do passado e do presente. 

No Brasil, ecoa um grito convidativo: “companheiras, apelo para vós, em nome do futuro da humanidade, para que unidas nos lancemos na luta, procurando eliminar tudo quanto obstrua o caminho que há de conduzir-nos ao futuro ditoso”.(A Lanterna, 1914) Eram as palavras de Maria A. Soares grafadas no jornal A Lanterna em 1914 (o texto também está no Jornal de Borda n.5, 2018).

Maria. Antônia Soares ou Maria Angelina Soares foram duas irmãs anarquistas que viveram na cidade de São Paulo e tiveram uma proeminente atuação na cultura libertária da Primeira República. Trabalharam como costureiras, professoras, militaram e escreveram para jornais anarquistas, inclusive no Nuestra Tribuna, organizado por Juana Rouco e outras companheiras. Trouxeram questões importantes, tais como educação libertária, anticlericalismo, anarquismo transnacional e feminismo, que ainda reverberam e são essenciais para pensarmos nos movimentos libertários. 

Avancemos para as terras bolivianas onde estava a chola libertária, cuja atuação foi fundamental para o movimento anarquista boliviano nos anos 30 e 40: Petronila Infantes. Foi cozinheira e atuou em sindicatos e federações. Opôs-se a uma oligarquia opressora racista e tanto em sua luta quanto em seus escritos foram abordadas questões sobre a condição das mulheres e da identidade chola. O seu grito ainda é o nosso coro: “O remédio está aqui na terra e é a Rebelião” (Jornal de Borda, n. 6, 2019) 

O fio que tece a história de luta dessas mulheres atravessa o oceano e se enreda à  Lucía Sánchez Saornil. Essa escritora livre e mulher combativa foi fundamental no movimento anarquista espanhol, na organização Mujeres Libres, na luta pela emancipação feminina e na frente de combate ao fascismo – processos inspiradores para pensarmos nas urgências que nos rodeiam. Em 1937, ressoa o Hino das Mujeres Libres: “Punho ao alto, mulheres do mundo/ aos horizontes grávidos de luz/ por rotas ardentes/ Adiante, adiante/ de cara à luz (Lucía Sánchez Saornil, 2015, Biblioteca Terra Livre, tradução Thiago Lemos).

São os escritos de e sobre essas mulheres do mundo que Charlas y Luchas almeja transformar em impressos. Tecendo os fios que entrelaçam o legado dessas mulheres imersas em diferentes conjunturas e que traduzem a ânsia de emancipação e liberdade numa perspectiva ampla. Entretanto, o impresso não é aqui pensado como a tentativa de encaixar essas mulheres nas grandes narrativas, mas sim de rememorá-las para que possamos fortalecer as ações combativas de hoje.

Aline Ludmila – historiadora e anarquista. Atua no Charlas y Luchas. Transita entre as publicações libertárias, a cultura visual e a história.

 

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