ELVIRA FERNANDES: A ERVA DANINHA

Por Beatriz Silvério *

A perseguição odiosa que se vem fazendo aos anarquistas,
em nome da “ordem social” não serve senão para apressar
o triunfo do ideal que os anima.
Os que aos anarquistas atribuem os mais perversos defeitos,

tendo em mira somente desvirtuar a sua propaganda, deles anarquistas, rejubilam de entusiasmo quando a grande imprensa lhes anuncia mais um triunfo da Civilização e do Progresso! Como se Progresso e Civilização se pudesse chamar aos frutos duma sociedade que proclamando a Liberdade,
se abstém de destruir as algemas que nos prendem a servidão.
Elvira Fernandes.
O Cosmopolita, Rio de Janeiro, 15/10/1917.

Faz parte do conhecimento popular que as ervas daninhas são plantas indesejadas, que nascem de forma espontânea em lugares muitas vezes impróprios, sem ninguém as ter semeado. Durante o período da Primeira República no Brasil, as elites e o governo atribuíam aos anarquistas a denominação de “plantas exóticas”, como se o ideal de uma sociedade sem hierarquias de opressão não servisse ao solo brasileiro. Tomo a liberdade de considerar estes libertários como “ervas daninhas”.

Nesse caso, porém, essas plantinhas indesejadas não nasceram de forma espontânea, mas foram semeadas entre e por trabalhadores, trabalhadoras e intelectuais no Brasil, tanto nascidos no país quanto imigrantes de diversas partes do mundo. Estes semeadores estavam presentes nos sindicatos, nas escolas, centros de convivência, associações e, com muita força, na imprensa contestadora. O nome de Elvira Fernandes se destaca em meio ao mundo literário majoritariamente masculino de A Voz do Trabalhador, A Época, Voz do Povo e O Cosmopolita: jornais operários publicados no Rio de Janeiro, entre 1913 e 1920.

Os centros urbanos modernos concentravam um grande contingente de mulheres trabalhadoras, especialmente no ramo têxtil e da costura, onde a força feminina era majoritária. Engana-se quem acha que essas operárias eram passivas frente às opressões que viviam. Muitas sementinhas de revolta floresceram pelas mãos que empunhavam linhas e agulhas. Elvira Fernandes foi costureira, assim como Emma Goldman, a anarquista russa que se tornou a “mulher mais perigosa da América” [i] e as irmãs Maria Antônia e Maria Angelina Soares, anarquistas, educadoras e frequentes colaboradoras da imprensa libertária do Brasil e América Latina [ii].

Existem registros de sindicatos de costureiras criados no início do século XX, em locais como Salvador[iii], Alagoas[iv], São Paulo[v] e Rio de Janeiro. Este último foi fundado em 1919, sob o nome União das Costureiras e Classes Anexas, no mesmo ano em que a categoria levantou intensas greves por melhoria das condições de trabalho e maiores salários. Entre as mais de cinquenta operárias que a criaram, estava a nossa Elvira e uma outra também de mesmo nome, a Elvira Boni de Lacerda,[vi] que ficou um pouco mais conhecida entre as tantas Elviras que existiram na época. No caso da Boni, foi costureira desde os 12 anos, era anarquista, sindicalista e atriz do teatro social[vii]. No ano seguinte a criação da União, Elvira Fernandes assumiu o cargo de segunda secretária[viii].

Muito antes do Estado brasileiro decretar o 1º de Maio como feriado do Dia do Trabalhador, esta data já estava inserida no calendário operário em memória aos Mártires de Chicago. No ano de 1913, nas comemorações dessa data no Rio de Janeiro, Elvira Fernandes aparece como a única oradora na sessão solene realizada pela Liga do Operariado do Distrito Federal, sendo extraordinariamente aplaudida pelos presentes[ix]. Porém, de acordo com um artigo escrito por ela e publicado em A Época alguns dias depois do evento, a aprovação não foi geral.

No texto intitulado Primeiras Palavras, Elvira conta que foi convidada pela Liga, porém notou que sua fala não agradara a muitos dos presentes no evento “porque, além de não conhecer o meio associativo onde pela primeira vez ousei usar da palavra, não podia fugir, como não fugi, de falar do dia 1º de maio, de acordo com seu justo caráter de protesto universal dos trabalhadores”. Ela completa que manifestara-se franca e sinceramente contra os que transformaram um dia de luta em “um dia de festa em que se envolveram com o presidente da República, como se fosse possível a esse representante supremo da autoridade […] se confundir com os pobres trabalhadores”[x].

A questão é que a Liga do Operariado do Distrito Federal se alinhava a corrente sindicalista reformista e não via problemas em alianças políticas com o presidente Hermes da Fonseca. Ou seja, as críticas de Elvira acabaram atingindo quem a havia convidado e não foram muito bem recebidas. Se os reformistas se incomodaram com suas palavras, os anarquistas demonstraram empolgação diante delas. Amílcar Boni, irmão de Elvira Boni, elogiou o artigo Primeiras Linhas, segundo ele “especialmente por trazer a assinatura de uma mulher; e isto porque o elemento feminino, infelizmente, pouco contribui neste vasto país, na luta pela reivindicação das classes produtoras.”[xi] Cabe refletir sobre a afirmação proferida: qual seria a causa dessa “pouca contribuição” das mulheres trabalhadoras?

Os outros escritos da costureira abordavam as duras condições de vida do operariado neste período, tratando de questões políticas, sindicalismo, educação, sempre sob ótica anárquica. Ela considerava que nem a República nem a Monarquia pretendiam emancipar o proletariado, mas conservá-lo “na ignorância, na opressão, suportando todas as tiranias em que se firma a sociedade burguesa”[xii]. Qual seria então a solução apresentada? “Onde está, pois, a decantada igualdade pelo bem integral da humanidade? Só na Anarquia!” [grifo meu] [xiii]. Considerava que “inventando para nós [proletários] uma nova forma de governo, não sendo banidos a autoridade e o capital, origem de todas as tiranias e mazelas sociais, não fazem mais do que criar mais uma barreira que de futuro há de exigir o vosso sacrifício”[xiv].Era necessário combater os dogmas políticos e religiosos “até o último alicerce por meio do ensino racionalista”[xv].

Apesar da posição política de Elvira transparecer em seus artigos, as informações sobre sua vida pessoal são bastante escassas. Chama atenção a frequência com que lhe é atribuído o adjetivo “jovem”, no momento em que ela começa a ganhar destaque entre o movimento operário após o evento do 1º de Maio de 1913. Esta era uma característica bastante comum às operárias militantes do período, que ingressavam na labuta fabril ainda muito jovens. Elvira Boni, Maria Antônia e Maria Angelina Soares, todas começaram a trabalhar em idades muito próximas a infância. As famílias pobres necessitavam complementar a renda, e os patrões aproveitavam para explorar a mão de obra infantil com remuneração muito abaixo daquela paga aos adultos.

Em um artigo de A Época, em prol dos presos em Portugal, a operária atestou ser “portuguesa de coração”, por ter sido “criada desde a mais tenra idade naquelas terras, e que incidentemente, si acha nesta outra hospitaleira em que se fala a mesma língua”[xvi], dando a entender que ela era brasileira mas passou parte da infância em terras lusitanas. A população do Rio de Janeiro no período concentrava imigrantes majoritariamente portugueses e um enorme contingente de migrantes nacionais, cuja maioria era formada por pessoas negras.

A habilidade de escrita não era acessível a todas os brasileiros nessa época. Em 1920, apenas pouco mais da metade das mulheres no Rio de Janeiro era alfabetizada. Por outro lado, através do ato de escrever se registrava as próprias ideias, e até mesmo a própria existência. A tradição oral foi por muito tempo desconsiderada, inclusive pela História, e quando passou a ser entendida como fonte já não era mais possível alcançar muitas camadas do passado. Imaginem quantas mentes revoltosas e criativas não tiveram acesso ao registro escrito e por isso jamais poderemos conhecê-las? Especialmente mulheres, pessoas negras e pobres, cujo acesso à educação era negado. Quando uma operária conseguia escrever era um ato contra todas as tentativas de ocultar sua insurgência. Hoje, elas se revelam para nós através das frestas da história, tal como as ervas daninhas que crescem entre as rachaduras do concreto. Quanto mais ainda descobrirei sobre Elvira Fernandes?

* Beatriz Silvério pesquisa anarquismo e educação libertária, é historiadora e educadora não formal.


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[i] GOLDMAN, EMMA. VIVENDO MINHA VIDA. TRADUÇÃO NILS GORAN SKARE. – CURITIBA, PR.
[ii] Charlas y Luchas. Episódio 02: Maria A.Soares: anarquistas  publicadoras e educadoras livres

[iii] Confederação Operária Brasileira: Novas e valiosas adesões. A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 01/08/1908
[iv] Columna Operária. O Paiz, Rio de Janeiro, 25/10/1913.

[v] União das Costureiras. A Plebe, São Paulo, 19/04/1919.
[vi] Messias, Maria Cláudia Novaes. Tramas femininas na Belle Époque Carioca: entre anarquistas e espíritas. Dissertação de mestrado em Psicologia Social, UERJ, 2013 p. 213.
[vii] PHMAGÓN; FONTES, Julio. Mulheres, anarquismo e luta de classes: Rememorando à história. Núcleo de Pesquisa Marques da Costa, 2014. 

[viii] União das costureiras e classes anexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06/11/1920.
[ix] A Festa dos Operários. A Época, Rio de Janeiro, 02/05/1913.
[x]     Fernandes, Elvira. Primeiras Linhas. A Época, Rio de Janeiro, 13/05/1913.
[xi]    BONI, Amilcar. Do Rio: Justas Palavras. Germinal!, São Paulo, 24/05/1013.
[xii]   FERNANDES, Elvira. Caminhemos! A Época, 22/05/1913.
[xiii] FERNANDES, Elvira. Ao Proletariado II. A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 15/071913.
[xiv]  FERNANDES, Elvira. Ao Proletariado, I. A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 1/06/1913.
[xv]   Ibidem.
[xvi] FERNANDES, Elvira. Para os operários presos em Portugal – um apello. A Época, Rio de Janeiro, 06/07/1913.

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