Na parede, Lituânia

Por Camilla Loreta*

“Não ir até o próximo para Deus, mas sim, ser impelido por Deus em direção ao próximo, como flecha em direção ao alvo pelo arqueiro.”
Simone Weil, em O peso e a graça

Acordei num susto, tive um sonho curto com uma mulher grávida que chorava de alegria. Parecia uma colega de trabalho de um conhecido meu, mas ao tentar me lembrar de seu rosto veio outra pessoa na memória, como se diferentes espíritos passassem pelo mesmo corpo. 

Será?

Algo como um gesto era o que diferenciava as duas, a mão de uma não gesticulava como a da outra, e isso me fazia separar as personalidades, mas mesmo assim misturei as feições de modo tão arraigado que não conseguia mudar a lembrança de um rosto duplo, cada vez que fechava os olhos na tentativa de separá-los algo os unia cada vez mais forte.  Difícil explicar esse acontecimento noturno, a imagem formada não é linguagem ainda, é vista internamente mas ao sair para o mundo pode comunicar coisas muito diversas. Para ser palavra, eu precisava descrever; e ao sentar na cama em meio aos sonhos e apoiar a caneta na página em branco  fugiram de mim os motivos, o que seria tão importante para se anotar?

Surgiu então o  seguinte pensamento, um pensamento-susto:  

Três noite seguidas que eu sonhava com o mesmo rosto, e as mãos dele de agricultor. Aquele rosto que me fez conhecer a falta de ar em momentos aleatórios do dia, apenas pela lembrança de um toque imaginado. A caneta pareceu mexer sozinha, meu caderno sorvia:

Na parede Lituânia
ao fundo tuas claras em neve que ajudei a firmar
coloridas ou não, as memórias território
de nossas origens remotas
uma região de migrantes

A risada grande sobre tua dislexia
Dança circular lituana
suas mãos no cigarro
minha cintura com espaços de espera

A luz do filme no meu rosto
você percebeu?
A luz que desenha bochechas

Uma mãe, que podia ser tua ou minha avó
usava tecido na cabeça
por costume

Meu desejo crescendo e observo
como a chegada de um poema
sem escrever
localizo suas consequências no mundo matérico

o torpor
o tremor
o peito arfante
suando a encharcar as costas, mesmo no frio

A língua logo denuncia
trocando o nome dos outros pelo seu

Vemos esse filme que você chamou de 
Idílico
Na sua voz a última sílaba quase que escapa
Deixando no ar um rastro de som

Fazia tempo que não escrevia um poema tão longo, cheio de eus, meus, seus, isso me incomodou, mas não havia maneira. 

O rosto de sonhos que me visitava era uma manifestação de algo que pulsava verdadeiramente em mim: A falta de controle que precede o salto, a sabedoria de cada músculo para aguentar a queda. 

Ouvi em algum lugar um senhor de respeito dizendo:

 quando iniciada uma jornada ela só se concretizava se ele sonhasse antes com aquilo, então pousei minha caneta e fiquei olhando para o teto de madeira cheio de teias velhas, um teto pintado de amarelo que na luz do abajur parecia mais amarelo ainda. 

Imaginei os morcegos que viviam no forro, imaginei os gambás também, mas não chegavam muitos sons além dos meus próprios. A sensação de solidão era imensa, mas o rosto dele voltava em presença forte, como um aviso, um preparo, uma dobra sensual no tempo. Algo que se anuncia no silêncio parte do princípio de para que sejamos ouvidos há de se criar um espaço de cultivo. Esse vazio, que é próprio de todas as coisas, me preenchia os ouvidos pela falta de animais, de ruídos.

Voltei a dormir embriagada daquilo que chamam de encontro, mesmo que o outro corpo dormisse em diferentes paragens, esse prenúncio do abraço me parecia cada vez mais forte. 

Momentos como esses, de suspiros noturnos, podem fazer do planeta um lugar improvável e ainda sim vivo.

Camilla Loreta pesquisa a escrita, o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais.


Jonas Mekas, Reminiscências de uma Viagem para a Lituânia (Reminiscences of a Journey to Lithuania)

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