recolham esta cabeça cortada,

Por Fabiano Lemos*

para Lucrecia Martel,
que também se chama Lina Meruane.

este fogo-fátuo de impérios que arrasta o nome em cacos de vidro e pó de pernas, pó de cabeças, pó de umbigos, recolham esta cabeça antes que ela volte a girar nas calçadas e as águas não consigam desinfeccionar tantos signos gravados em pedra, o teu nome, o teu pequenino nome escrito de trás pra frente, e então tragam-na numa bandeja de prata (é assim que se diz? repete comigo: é assim que se diz? é assim que se diz?), numa bandeja de prata entulhada com os enfeites açucarados que serviram para que esquecêssemos que éramos,

portanto,

felizes.

(recolham esta cabeça cortada, este berço de loucas, de tantos nomes, nomes de três sílabas, nomes de oito sílabas começando com a letra R, nomes separados por um hífen, nomes-separados-por-um-isso-que-chamam-deserto, agora, antes, agora, recolham esta cabeça quicando, descendo risonha e destruída pela escada, ora com os olhos esmagados para cima, ora com os lábios ressecados e curiosos, ouçam o que ela diz, os verbos que ela conjuga enquanto avança assombrada ladeira acima, na fila da farinha e das lavandas, ela te diz o preço dos dias e das moléstias, apenas para lembrar que éramos,

ainda,

felizes).

recolham isto a que chamam cabeça, ombros, dentes caninos, molares e prancha de estrela, nadem até a praia antes que ela os alcance e morda suas bermudas e saias e as puxe até que fiquem nuas e morram de vergonha, ainda molhadas, ainda antes de chegarem ao outro lado da vala de oceanos perfumosos, recolham esta cabeça quando ela se esconder nos terrenos baldios perto de postos de gasolina, onde eles, com as botas afiadas chutarão nosso tempo e as palavras estarão vazias, escritas ao contrário, de cima para baixo, o tanto que nós ensaiamos e tão dedicadamente e tão cheias de vogais, anteriores, palatais, centrais, posteriores, velares, úmidas, desarranjo de adjetivos que esta cabeça fala enquanto escorrega pelo piso de cerâmica que colocaram por cima dos tacos apenas porque era mais fácil de limpar, e também as consoantes, oclusivas, bilabiais, constritivas, labiodentais, diga seu nome (é assim que se fala: labiodentais? é assim que se fala? repete comigo: piso de cerâmica), diga seu nome e corra até a janela, alguém lhes dirá que

ainda

estamos

aqui e as chaves estão metidas em seus buracos.

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Fabiano Lemos é professor de filosofia da Uerj e acumulador compulsivo. Faz @fotosdosoutros

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