O ACOLHIMENTO DE MULHERES ATRAVESSADAS PELAS VIOLÊNCIAS COTIDIANAS

Dandara Luigi*

Talvez eu possa dizer que todos os momentos são históricos, mas uns são mais que outros. Cá estamos nós – início de 2020, uma pandemia alastrada mundialmente, a necessidade de se fazer quarentena, e assim os muitos problemas sociais vão sendo escancarados – dentre eles: a misoginia entranhada na construção das sociedades.

Nada é paralisado de fato, e essa violência persiste de todas as formas, inclusive dentro das casas de quem se mantem em confinamento com seu agressor. Grita-se: a violência contra a mulher aumentou 44% em São Paulo durante a pandemia; a cada 4 minutos 1 mulher é agredida no Brasil, e 70% dos agressores são geralmente marido, namorado ou ex – o ex que a mulher finalmente teve força de se livrar, mas o infeliz não aceita, não aceita porque o patriarcado passa a mão nas costas e diz: “Não precisa aceitar, não precisa respeitar, você é a porra do macho que tem o poder da situação”.

Então, como quem pensa o espaço, como não apontar o papel da arquitetura nessas questões de gênero que atravessam o direito a cidade? Se enquanto prática, pensamos, modificamos, organizamos e criamos espaços, nesse caso, podemos pensar em um lugar que acolhe, que não está apenas ali inerte, mas que possui a qualidade de influenciar o comportamento de quem habita. E para pensar esse conceito é preciso ir à raiz, compreender sua estrutura – é preciso visualizar a estrutura patriarcal e misógina em que vivemos.

E foram muitas as histórias criadas ao longo dos tempos na tentativa de legitimar e nos fazer submissas. A “ciência” diz que somos uma criação imperfeita da natureza, frias e úmidas, o segundo sexo; criam o gênero e papeis sociais e associam ao sexo, dizem que: “este corpo é maternal, então deve estar confinado ao lar”. Essa domesticidade imposta pelo patriarcado e intensificada com a propriedade privada, com o capitalismo, transforma nossos corpos também em propriedade, e assim se legitima a violência contra as mulheres.

Mas não deixamos ficar por isso não, transformamos toda a fúria acumulada, das violências que sofremos, em fogo! E ainda falta queimar e fazer ruir muitas estruturas sociais, desnudar questões de gênero e sexualidade, desfazer paternalismos, destruir Estados e hierarquias de classe – tudo que nos violenta.

Ainda assim, cada uma lutando a seu modo, mesmo nesse pé ante pé, muitas foram pedir por mudanças por meio de avanços em legislações, ainda que seja questionável a eficiência das mãos do Estado que também tanto golpeia junto das mãos do patriarcado capitalista, clerical, racista e colonial – nos degenerando, impondo a cis-heteronormatividade, sujeitando a capacidade reprodutiva de corpos com útero em máquinas de produção de proletariado, num eterno trabalho não pago.

Em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de um tiro nas costas enquanto dormia, disparado por seu esposo, sabia? 23 anos depois, a exemplo de sua luta, criaram uma legislação para proteção das mulheres da violência de gênero, e a homenageiam. HOMENAGEIAM.

[respira fundo].

          Essa legislação fala de “centros de reabilitação para agressores”, cadê?

É a mulher que procura por refugio em outro lugar, quando não aguenta mais ser tão nocauteada. É a vítima que tem de aprender a se defender, é a vítima que tem que sair da sua casa, é ela quem vai ficar semanas ou meses tentando reerguer sua vida, retomar sua dignidade. Perceba: mulheres sendo vítimas de uma violência misógena, racista, LBTfóbica… é fato histórico e pilar da sociedade em que vivemos, mas somente em 1970 que se desenvolve o mínimo de assistência – a primeira casa-abrigo, na Inglaterra. Aqui, só em 1986, em São Paulo, e ainda assim, mais de 30 anos depois, frente aos números alarmantes das violências cotidianas sofridas pelas mulheres, menos de 2% das cidades brasileiras oferecem acolhimento.

Casas-abrigo ou Centros de Acolhimento – não são a solução ideal, não fazem desmoronar esse sistema de merda que toma o poder pra si enquanto tenta fazer do outro submissa – mas acolhe, ajuda a se levantar – a retomar sua autoestima, sua dignidade, sua autonomia, seu autogoverno. Como transformar isso num conceito para arquitetura de um centro de acolhimento para mulheres?

Penso em algo que se recolhe pra si, que se abraça, e que nesse centro do abraço, acolhe. A percepção de segurança e as sensações proporcionadas pelas amenidades metafóricas do espaço – penso em passar uma impressão para quem de fora observa e completamente outra para quem de dentro habita. Uma volumetria sigilosa, que dá as costas para o seu entorno e se volta para dentro de si, que se constrói entorno de um pátio que conecta os ambientes ao seu redor e também estabelece um ponto de encontro para as mulheres. Três volumes formando um U; blocos de concreto aparente; aberturas generosas que deixam a luz e a ventilação passar; a profunda importância do paisagismo, da biofilia e sua tendência a sensação de bem-estar, aconchego, conforto, harmonia e tranquilidade. Um espaço que potencializa o processo de retomada.

Na obra “A mulher é uma degenerada” Maria Lacerda de Moura questiona a domesticidade, sendo esta opressora ao desenvolvimento das mulheres, na medida em que as submete ao casamento pautado em interesses econômicos, a inferiorização, a lógica de obediência e a submissão ao marido – dizia que, perante isso, é necessário “transmitir, transformar e transgredir”. Suas ideias ainda se fazem presentes.

Dedico este trabalho a todas as mulheres que já foram vítimas diretas de uma violência misógina nocauteante e assassina; assim como a todas as mulheres vítimas das violências indiretas que nos atinge todos os dias, ao colocar o pé pra fora. Que possamos nos acolher e tenhamos força para fazer desmoronar a velha sociedade. Com afeto y fúria, Dandara.

* Dandara Luigi é formada em arquitetura e urbanismo e pesquisa o direito a cidade numa perspectiva de gênero, raça e classe. Defendeu o projeto de um Centro de Acolhimento para Mulheres Vítima de Violência, como trabalho final de graduação – seu texto se baseia nisso.

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