Unidas, unidos e unides: história dos de baixo, internacionalismo e movimento operário no legado anarquista de Maria A. Soares*

 * Kauan Willian dos Santos (Doutor em História Social -USP, Editor do ITHA (Instituto de Teoria e História Anarquista e professor municipal) no texto e desenho de Caio Paraguassu.

Em 1988 a historiadora francesa Michelle Perrot publicava no Brasil a obra “Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros”. Sua intenção em diversas obras era debater o lugar da historiografia francesa, mas também ocidental, que não só ignorou por muito tempo agentes históricos que não fossem líderes políticos e religiosos (principalmente mulheres), mas quando se apropriou deles, o fez com uma visão totalmente enviesada pelos “de cima”. Esse debate atravessou o século XX, contendo importantes militantes, historiadores e teóricos como Walter Benjamin (“história a contra-pelo”), Edward Thompson (“história vista de baixo”), Patricia Hill Collins (“standpoint feminism”), Anibal Quijano (“colonialidade do poder”) e muitos outros.

 Atravessando o século XXI, a pergunta que devemos fazer é como esse projeto segue. Até que ponto estamos lendo, escrevendo e publicando uma história dos excluídos a partir dos excluídos? Escrever sobre eles é muito fácil, mas a questão, como coloca Perrot, é que “muitas vezes observou-se que a história das classes populares era difícil de ser feita a partir de arquivos provenientes do olhar dos senhores” (PERROT, 1988, p.198). A questão não se resolve quando simplesmente os excluídos “falam de si” (como uma interpretação vulgar do “standpoint feminism” defende), já que ignora o que os clássicos feministas e socialistas tanto colocaram: a alienação e as opressões não só podem, mas são reproduzidas como manutenção do poder das estruturas entre os de baixo. É preciso, portanto, não só “falar”, mas se debruçar sobre a história, teoria, saberes, intervenções, construindo e ensinando em comunidade, não só a partir de “um lugar”, mas lugares coletivos — buscando também a coletividade, como nos ensina bell hooks e Paulo Freire. 

 Nesse sentido, Lucien Van der Walt evidencia que “mais do que qualquer outra ideologia moderna, o anarquismo tem sido mal-compreendido, inclusive pelos acadêmicos” (VAN DER WALT, 2019, p.5). Felipe Corrêa e Rafael Viana mostram que anarquistas, além de reprimidos fisicamente pelos Estados-nacionais, seja de direita ou ditos de esquerda, tiveram suas histórias e teorias escritas por visões deturpadas, enviesadas, eurocêntricas, fazendo até mesmo simpatizantes do anarquismo serem impregnados com tais visões (CORRÊA; VIANA, 2015). Se a situação é difícil para o anarquismo, agora imaginemos para a história de mulheres anarquistas. Elas são apagadas já pelas visões dos Estados-nacionais (que privilegiam história dos grandes políticos), da “história oficial” (onde se ignorou na maior parte do tempo mulheres) e do próprio anarquismo (que muitas vezes não contou a história de suas próprias militantes). São esquecimentos e exclusões múltiplas que se sobrepõe numa dificuldade para a construção duma “história vista de baixo”, de fato, como analisa a historiadora Samanta Colhado Mendes. 

Com a retomada dos estudos e memórias anarquistas, a partir do fim da Guerra-Fria, no Cone Sul a partir apenas do fim das Ditaduras, o empenho de militantes atravessando essas décadas guardando e escrevendo sobre o anarquismo, e com as lutas antiglobalização (onde anarquistas começaram a trocar tais memórias e documentos globalmente com o avanço da internet e fóruns libertários), alguns grupos de pesquisa, arquivos e editoras se fortificaram e almejaram desfazer esses nós. Alguns deles podem ser citados como a retomada do Centro de Cultura Social, desde a década de 1980 e o Arquivo Edgard Leuenroth, da UNICAMP em 1974 e a Editora Imaginário em 1989. No início dos anos 2000 podemos citar a Biblioteca Social Fábio Luz, do Rio de Janeiro; o Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ); e, mais recentemente, a Biblioteca Terra Livre e o Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

 Nesse movimento, para sanar essa lacuna em específico, a Tenda de Livros, inciada em 2014, visa “discutir a produção de livros e publicações para além do mercado editorial sob uma perspectiva feminista e anarquista”. Além do jornal O BORDA, uma retomada das típicas publicações libertárias, de 2015 até 2021, a Tenda de Livros, em 2018, lançou a edição comentada de “A mulher é uma degenerada” da anarquista Maria Lacerda de Moura. O livro é parte integrante de uma série composta por cinco livros, os outros quatro são: “Rebelión de mujeres”; “Fascismo: definição e história”, de Luce Fabbri; “Matilde Magrassi: uma libertária no Brasil e na Argentina” e “Sou Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro.” Em 2021 a Tenda lançou a coleção Charlas y Luchas, que vai versar sobre cinco mulheres anarquistas.  A primeira delas foi Maria A. Soares.

É espantoso, na verdade, que não se tenha quase publicações sobre essa mulher e ela seja desconhecida hoje por anarquistas, feministas e mais ainda se pensarmos na esquerda hegemônica do país. Maria A. Soares foi uma militante e jornalista importante nas primeiras décadas do século XX para a construção do movimento operário em São Paulo e no Brasil, para o anarquismo, o sindicalismo revolucionário, para a imprensa operária e de bairro, e para debates de gênero no interior e exterior desses espaços (o que irá se chamar depois “anarcofeminismo”). Nasceu em São Paulo, mas viveu a juventude nas cidades portuárias de Santos e Rosário (Argentina). Escreveu em proeminentes jornais anarquistas, anticlericais e sindicalistas como A Lanterna, A Plebe, Terra Livre, e fundou organismos militantes como O Centro Feminino Jovens Idealistas, que reunia mulheres anarquistas para tratar das questões educativas sindicais e de gênero das mulheres operárias.

A obra “Unidas nos lancemos na luta: o legado anarquista de Maria A. Soares” foi construída e publicada sob uma forma que a libertária em questão iria gostar muito, coletivamente. 

Além de ter alguns dos seus principais textos e cartas, a obra contém a análise de historiadoras e ativistas sobre a militante, alocada nas discussões sobre anarquismo, sindicalismo, internacionalismo, feminismo, cultura operária e outros temas. Um livro que abre diversos leques para debates e construções coletivas, o “apoio mútuo” e a “educação libertária” que tanto pregava Maria A. Soares, seu irmão Primitivo Soares e outros anarquistas e sindicalistas do período. Aline Ludmila, Amy Westhrop, Ananita Rebouças, Beatriz Lacerda, Beatriz Silvério, Dandara Luigi, Fernanda Grigolin, Laura Daviña, Nabylla Fiori de Lima, Samanta Mendes, Wilma Lauer, construíram juntas, desde a tradução, edição, escrita e divulgação. 

 Há muitos pontos e discussões que a obra pode trazer. Mas  cito  duas discussões interessantes na perspectiva das minhas pesquisas sobre anarquismo, sindicalismo revolucionário no Brasil e internacionalismo. A primeira delas é a discussão sobre movimento operário e cultura operária. Nesse sentido, alguns brasilianistas que tiveram a oportunidade de estudar o anarquismo em meio aos arquivos censurados, nas décadas de 1960 e 1970, como John Dulles e Sheldon Maram, apesar de narrativas que tentam evidenciar a “história excluída dos anarquistas”, mostraram o mundo operário da Primeira República como algo muito monolítico, onde o anarquista italiano branco homem e europeu de fábrica era não só o centro, mas quase o único. Trabalhos como o de Margareth Rago em “Do Cabaré ao Lar”, do final da década de 1980, já questionava essas visões, colocando como elemento essencial a casa, os afazeres domésticos, a criação das crianças, ou seja, o universo tido como “feminino” como parte fundamental para se compreender a cultura operária do período. Mais tarde, trabalhos como do historiador Claudio Batalha, Uassyr de Siqueira, Tiago Bernardon e Samanta Mendes irão mostrar o anarquismo, o movimento operário e as tradições desses de forma mais complexa, revelando nuances de classe, raça, espectros políticos, nacionalidades e outros.

 Essa obra também vem somar nesse sentido. Não é apenas Maria A Soares jogada numa história pronta, a partir de uma visão monolítica do movimento e dos bairros operários. Mas sua visão e lugar enquanto mulher militante, filhas de imigrantes empobrecidos, é a base de uma visão somada a outras fontes e o debate bibliográfico atual, revelando a complexidade daquela realidade, onde as militantes operárias e anarquistas construíam movimentos grevistas com maioria dos homens sindicalistas e anarquistas, por um lado, e, por outro, também sobrevivendo enquanto mulheres nos bairros mais pobres de São Paulo, muitas vezes lidando com práticas machistas de seus companheiros e parentes. Não era possível, para Maria A. Soares, libertar o operário sem libertar a mulher operária:

“Esta é, em pálida realidade, a condição da mulher operária. Instrução, distrações, alegrias, satisfações morais e materiais são para elas coisas desconhecidas. Tendo em consideração essa vida obscura e dolorosa da mulher, acertamos a compreender o porquê do embrutecimento da imensa legião dos proletários.” (SOARES, 2021, p.115)

Outro debate muito importante é sobre o internacionalismo e o transnacionalismo tratado na obra. Devemos considerar aqui a narrativa do Estado-nacional se legitimar enquanto conta sua história foi muito poderosa na Universidade. Nesse sentido, como, por exemplo, no caso dos EUA, os mártires de Chicago (mortos pelo Estado por serem anarquistas) são tratados hoje como heróis nacionais que “lutaram por direitos trabalhistas.” Quando não apagam a história dos anarquistas, as reescrevem, ignorando totalmente que essas pessoas lutavam não só por melhoria de vida de oprimidos e trabalhados, mas contra o capitalismo, o Estado, e se declaravam sem pátria!

Escrever reafirmando os princípios internacionalistas de Maria A Soares e outros, portanto, é uma forma eficaz de construir essa “história vista de baixo.” Não só no discurso, no capítulo “O transnacionalismo e a questão social” de Beatriz Silvério mostra a militante construindo o Congresso Internacional da Paz e o Congresso Anarquista sul-americano, dois dos eventos mais importantes para a união dos anarquistas no continente, assim como órgãos antimilitaristas que combateram a Primeira Guerra Mundial como plano das classes dominantes de dividirem a classe trabalhadora, como tentei analisar em algumas das minhas pesquisas (SANTOS, 2018). Os documentos e escritos, tanto dela, mas de sua irmã Angelina Soares também revelam o anseio de solidariedade internacional, contra os Estados e pela ação direta, típica dos libertários. Em 1964, em carta, sua irmã se reafirma citando que “ninguém deve ir para a guerra. O que é preciso, é que se acabe com todas as guerras (p.204).”

 Essa obra abre muito bem uma coleção e um projeto coletivo não só que deve ser lido por mulheres anarquistas. Mas por todas, todos e todes (como acreditava Soares), que não só se devem educar em comunidade, mas se libertar conjuntamente. “São os ideais modernos de redenção humana, defendidos por homens e mulheres de todas as partes, idealistas do mundo inteiro, que saberão fazer triunfar os seus nobres princípios de liberdade e justiça” (p.46). 

Referências 

BATALHA, Claudio Henrique de. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.
CORRÊA, Felipe; SILVA, Rafael Viana da. Anarquismo, Teoria e História. In: CORRÊA, Felipe; SILVA, Rafael Viana da; SILVA, Alessandro Soares. Teoria e História do Anarquismo (Orgs). Curitiba: Editora Prismas, 2015. 
DULLES, John. Anarquistas e comunistas no Brasil, 1900 – 1935. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
HOOKS, bell. Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Editora Elefante, 2021.
LUDMILA, Aline et al. Unidas nos lancemos na luta: o legado anarquista de Maria A.Soares. São Paulo: Tenda de Livros 2021.
MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Tera, 1979.
MENDES, Samanta Colhado. Companheiras: mulheres anarquistas em São Paulo. São Paulo: Editora Faísca, 2021.
OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Anarquismo, sindicatos e revolução no Brasil (1906–1936). Tese (Doutorado em História) — Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.
PERROT, Michele. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
QUIJANO, Anibal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Perú: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil, 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
SANTOS, Kauan Willian dos. “Construindo o Congresso Internacional da Paz e o Congresso Anarquista Sul Americano: cultura política e o trânsito de ideias e experiências anarquistas e sindicalistas entre o Brasil e a Argentina nas duas primeiras décadas do século XX”. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), v. 18, p. 37–49, 2018.
SIQUEIRA, Uassyr. Entre sindicatos, clubes e botequins: identidades, associações e lazer dos trabalhadores paulistanos (1890–1920). Tese de Doutorado – Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, 2018.
THOMPSON, Edward. A Formação da classe operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
VAN DER WALT, Lucien. “De Volta para o Futuro: a retomada e a relevância do anarquismo, do anarcossindicalismo e do sindicalismo revolucionário para a esquerda e os movimentos de trabalhadores do século XXI”. In: Instituto de Teoria e História Anarquista, 2019.

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