Por Mayra Martins Redin*
1.
Vejo na rua o homem que dorme
Todos são bebês porque tiveram
Ou não tiveram mãe
Tire a palavra da minha boca
Ao invés de aniquilar minha voz
Não me faça engolir porque não é ar
Palavra
São todos bebês quando decidem se matar ou enfrentar o mar
Que tiveram ou não tiveram mãe
E a mãe que se conforma numa aposta tardia que ali já não está mais apenas um prólogo de ser, já que ele decidiu algo por si, finalmente
Mesmo que morrer
E a mãe que se conforma e jamais se despede – daquele que pra ela nunca pôde estar
E a mãe que não que nunca que nunca se conformará
Confirmando toda uma existência
Tiveram ou não tiveram mãe
4.
A mulher do uber
com o caminho que toma
É insegura
O caminho
Me toma
A mulher
A mulher do uber
É insegura
Não perde o caminho dentro de si
Porque está perdida lá fora
No caminho que toma
A mulher do uber
Me olha pelo espelho retrovisor
A cada curva
Espera que eu confirme
A curva tomada
O homem do uber
não
olha desde antes
Já está adiante
no meu destino
nas nossas viagens no escuro
na sua rota segura
Eu não sou uma mulher do campo
Mas eu não sei dirigir
No trem escrevo os sonhos
Destino rodoviária
Cada parte
Em itens
Uma lista para não esquecer
– Um quarto de hostel
– Uma arma em cima da cama
– Se for de um homem
– Vem uma mulher
– Estamos juntas
Os sonhos não têm destino
Mas me dirigem a palavra
5.
Tem aqueles dias em que a criança não dorme
Berra
Diz que dói a perna e já sabe que é chazinho que ajuda
Dorme
Volta a acordar
Dorme
Durante a noite
Quando a criança dorme
O velho acorda
Intercalados
Diz que está na hora de comprar o pão
E não entende porque os jovens ainda não voltaram
Os jovens dormem desde as dez
São quatro
De manhã
O adulto volta com notícias sobre o senhor que tentou salvar
Os filhos adolescentes no mar
Ele vê seu cabelo cinza que sai do saco prata
Tem os que morrem pra salvar
O adulto triste e entusiasmado
Abre no celular vídeos ao vivo do ocorrido
Podia ser ele
Ele faria o mesmo por seu filho
Mas não deu tempo
A jovem senhora prepara um sal grosso com alho
Enquanto as outras preparam a carne moída com milho
Dizem que a noite foi das bruxas
E só dá pra resolver isso com bruxaria
As crianças na varanda catam flores e galhos e gramas e colocam no pote de plástico com água
Conversam sobre a morte
Apropriadas das informações
Uma mais que o outro
Sabe bem onde está seu irmão adolescente
À noite chove na ilha
Pode ser coincidência
Como o mar que de manhã estava agitado e à tarde parecia dizer que estava satisfeito
Estamos a salvo
Pelo menos nesta temporada
6.
Ele dorme
Mas sempre tem que ter alguém com um olho na criança
Enquanto a criança ainda corre
Eu penso em anotar as frases que vem
Vão
Um olho que segue
O outro que dorme
Quem pensa é alguma parte do corpo que sente euforia entre os dois olhos
A euforia nesse modo é só uma espécie de aceitação das coisas como estão
E é, portanto, momentânea
Quase não há calma
A criança chama e diz que alma não tá dentro
Penso rapidamente
Alma é jeito
Mayra Martins Redin atua na intersecção entre a arte, a escrita e a clínica psicanalítica.
Deixe uma resposta