A promessa como procedimento artístico

Por Raylander Mártis dos Anjos*

— As palavras estão contra mim, mas prometi escrever até reordenar o léxico, a gramática, a linguagem, a cognição, a práxis. 

Gostaria de localizar quem me lê no procedimento da promessa, que está implicado em meu fazer artístico.

A primeira vez que me prometi foi em 2013, quando preparava para deixar a minha cidade natal e viver em Belo Horizonte: comprei a minha primeira peça de roupa marrom. Eu já tinha outras peças marrons ganhas, mas comprar a minha primeira peça de roupa foi um gesto de autonomia que nunca me esquecerei.

Prometi naquele ano começar a incorporar os marrons em meu uso diário, até a sua integral presença em minha vestimenta hoje em dia. Desde então compreendo isso como minha primeira promessa em arte. Não que eu já não fizesse qualquer coisa que era considerada arte no interior de Minas Gerais: lá desenhava, pintava e escrevia, mas nada disso fazia tanto sentido quanto prometer. 

Em uma situação que implicam limitações, a promessa virou a minha matéria de trabalho.

Prometer para mim mesma tornou-se parte essencial do que faço. Me acostumei com a ideia de que o meu trabalho surge da criação de promessas, muitas das quais impossíveis.

Prometer é sempre firmar algum pacto impossível com o futuro; prometer é romper com as estatísticas e as previsões. Geralmente, prometer em arte sempre retoma a maior promessa que um dia já fiz a mim mesma: continuar viva o quanto for possível viver. 

Prometer circular fichas por 10 anos; prometer editar um livro; prometer realizar uma exposição. Prometer brincar por 10 carnavais consecutivos com o Bloco do Choro; prometer  organizar meses de um laboratório sobre o riso em um parque de São Paulo; prometer organizar  meses de um laboratório sobre o choro e as suas tensões de gênero; prometer visitar diariamente um museu durante dois meses a fim de compreender uma exposição; prometer visitar semanalmente um museu às terças-feiras por quatro meses consecutivos, para perseguir artistas; prometer fazer uma performance que duraria meses em deslocamento; prometer passar uma vida vestindo marrons. Prometer…

Não paro de prometer a mim mesma coisas que, para serem cumpridas, dependem que eu permaneça viva. Prometo estar viva aos 25 anos, aos 35 anos, aos 45 anos, aos 55 anos, aos 65 anos. Eu prometo, em forma de procedimento artístico, qualquer coisa impossível. Sou uma artista que promete fazer trabalhos que durem no tempo. Trabalhos de longa duração. Quando vi, já estava prometendo. Antes mesmo de me dar conta eu voltava no mesmo procedimento: prometer incansavelmente.

Para mim a promessa ganha mais sentido quando percebo que posso ser tirada daqui. Desde o dia em que corri para não ser morrida por um grupo de homens entendi que preciso continuar prometendo para mim mesma coisas impossíveis: viver mais 10, 20, 30, 40 anos. Os trabalhos, na verdade aquilo que chamo de trabalho, são desculpas bem elaboradas e complexas, inscritas numa tentativa de permanecer em movimento.

Por fim, faço um pedido: se, em algum momento, eu já não estiver entre as vivas que por aqui peregrinam, peguem todas as minhas roupas marrons, dobrem-nas com muito cuidado, acomodem-nas no chão, peça por peça, até formar um grande círculo no espaço. Um círculo impossível, assim como eu fui. Elas, as roupas, gritando silenciosamente no chão, serão o testemunho de que as vesti dias e noites, e por aqui passei. O meu último trabalho, o índice de que aqui estive e de que nestes trapos de mundo peregrinei me mantendo viva, até o dia em que fui viver em outros lugares.

— E se prometeram me fazer desaparecer, me farei durar o quando for possível:  prometo.

São Paulo, 30 de maio de 2020.


Raylander Mártis dos Anjos*, nascida no cafundó do mundo, atua de forma transversal

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