Querida Mariarosa,

Por Fabiana Gibim*

Eu escrevo de um outro lugar e de um outro tempo. Sinto ainda vivas todas as ranhuras aqui. Nos vejo em tantas dobras, tão dificultosas em movimentação. O mundo sempre foi um lamaçal: areia movediça venenosa para nós que circulamos no escuro, pregamos peças no absurdo. Vivemos da palavra que ameaça.

Assim como você fez, confesso que Maria Lacerda de Moura também me puxou tanto as orelhas, de tantas formas, que me incumbiu da função de assumir um lugar de incongruência tão imenso, aquele carniceiro lugar de criação verborrágica, intragável. A mulher, esse sujeito intragável. Eu vi você, muito antes de mim, criar lugares possíveis pra viver, porque nenhum lugar, nem no mais doce espaço de companheiros, é o lugar de uma mulher que vive no oco da selvageria. Uma mulher que publica vive tantas vozes, tem tantas barrigas com fome, pare tantos homens ingratos, vive com a navalha no olho, cravada, chorando de ódio.

É que falavam essas mulheres publicadoras antes de mim. Diziam vozes de labor indignado e insurgente, no antro de calhamaços de grandes teorias masculinizantes, de palavras de ordem com uma índole limitadora de nossas degenerações

Eu edito você hoje, reviro os olhos de impaciência contigo no túmulo, silenciosa e cansada. Eu, viva, você viva em mim. “A fêmea é inessencial perante o essencial. O Homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”, diz a Simone. Eu aprendi em uma palavra breve a ocupar o espaço de publicadora mas aprendi, à beira da vida, a publicar o meu corpo de fêmea. O feminino que me habita, o mesmo que te habita, o cancro do mundo, o gás perene da noite, o radical do sujeito. Eu escrevi uma palavra e ela era insólita: você escreveu do Lotta Feminista um raio definitivo, afiado de tantas pólvoras que precisei de tanto sangue pra receber, comer a fome de tantas vozes de mulher, engravidar de vocês, enfiando as unhas na crosta do mundo para ele girar à força. Os caminhos tão escuros de uma força oculta de quem publica o segredo indefinido de nossos corpos estranhos…

É perigoso o corpo proibido do mundo, desafiando o destino a um enigma vestido de infâmia. Eu sou a mulher que fala tantas possessões, tantas vidas nas minhas fibras, com a barriga explodindo de lava do centro da terra, tendo tantos nomes; um corpo vivo de labaredas antigas – você me continua, eu continuo a nós, na proposta política de escrever a palavra indomável. Demônios caídos tão fundo que as estratégias não toleram. A política do homem não compõe e a verdade é um trava língua, tão secreto, enfiado numa cauda de cometa, que vai da nossa língua até o último panfleto que deixaremos em alguma praça, em algum fim do mundo.

Viver é impossível no nosso corpo intolerável por todos. Publicarmos no escuro é recusável, paga-se caro, paga-se com a vida o movimento da nossa palavra. Se eu pudesse falar contigo, eu te diria o seguinte: estamos fazendo isso por aqui, pagando com corpos suados o cheiro podre do jogo que sempre perdemos, do andar tosco dos passos de homem num livro, do dedo marcado no jogar de dados. Pagamos o jornal com a língua e tudo que falamos é uma ameaça. Eu te acompanho na nossa ameaça. E eu repetiria o que Carla disse: cuspa em Hegel. Estamos com as tripas na boca, sugando o sumo da vida, publicando a desordem.

Essa é uma carta para todas as publicadoras independentes cujo alcance seja possível, ela é para todas as mulheres das beiras.

Com amor y fúria,

Fabiana

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O texto foi originalmente publicado no site da Sobinfluencia.

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Fabiana Gibim é editora da sobinfluencia edições (@sobinfluencia). Pesquisa sobre surrealismo e publicação independente, em especial dos movimentos insurgentes vinculados ao Autonomismo, Situacionismo e Surrealismo.

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