Rita Serrano e Marília Scarabello, ou o elo indissociável entre política e arte

Por Fernanda Grigolin*

O meu feed do Instagram está há dois dias repleto de manifestações indignadas e contrárias ao cancelamento da exposição O Grito!, cuja curadoria é de Sylvia Werneck. A mostra selecionada no Programa de Ocupação dos Espaços da Caixa Cultural ficou apenas seis dias em exibição na unidade de Brasília.

A exposição rendeu inúmeras postagens questionadoras sobre o que é arte e qual o papel de um espaço público de arte. A extrema-direita pressionou e Rita Serrano foi demitida da presidência da Caixa Econômica Federal e quem assumiu o seu lugar foi uma pessoa indicada por Arthur Lira.

O mesmo Arthur Lira é retratado em uma das imagens construída sob múltiplas vozes e pensada como um site specific pela artista Marília Scarabello em O Grito!. Lira está na lata do lixo juntamente com Damares e Paulo Guedes. Na colagem, Lira olha para quem o retrata, e parece que dai ele emerge mostrando que o lugar no qual foi posto é pequeno e a destruição pode ser ainda maior…

colagem que faz parte do site specific Bandeiras, de Marília Scarabello

Marília desde o início da exposição vem sofrendo ameaças, perseguições e linchamento virtual, alguns questionam: “quem é ela?; como ousa?”. São perguntas sempre feitas às mulheres e aos corpos dissidentes quando atuam, questionam e produzem.

A artista era uma das sete pessoas unidas em um espaço expositivo para problematizarem a representação mais famosa do Sete de Setembro, realizada por Pedro Américo no quadro Independência ou Morte (1888). Élcio Miazaki, Evandro Prado, Gina Dinucci, Moara Tupinambá, Paul Setúbal e Yara Dewachter também faziam parte da mostra cancelada. A curadora, Sylvia Weneck, diz em seu texto que a tela de Pedro Américo é “símbolo da inauguração do Brasil como nação autônoma”. Conforme a curadora, os artistas “examinam e problematizam as narrativas ufanistas eleitas como a história oficial perpetuada nos livros e nas mentes dos brasileiros, que a pintura de Pedro Américo pretendia eternizar.”

O quadro de Américo representa um Brasil que nasce como nação às margens de um riacho com céu azul, espadas ao alto e homens em seus cavalos. Na época, a região do riacho do Ipiranga era um pântano e uma zona de passagem entre São Paulo e Santos, as comitivas eram apenas de cavaleiros esporádicos rumo ao litoral ou regressando dele.

O quadro de Américo é acervo permanente do Museu Paulista no Ipiranga, e está chumbada em suas paredes. A imagem nasceu bem antes do mito que planejou eternizá-la; ela foi um artifício para o projeto de poder político paulista que coloca a cidade de São Paulo como o lugar nascedouro da Nação na Primeira República e não antes disso. Por mais que a independência tenha instaurado a monarquia, o mito “ipiranguista” é fortalecido na República. O mito explode ainda mais hoje em dia e nas ruas deste bairro, com a reinauguração do Museu e com a especulação imobiliária, e o apagamento de seu passado operário e de casas geminadas. Narrativas emancipatórias e fortalecedoras da autonomia popular, como as lutas de independência da Bahia, não estiveram em discussão no projeto político republicano de construção de Nação, por exemplo.

A censura à exposição, e suas consequências para duas mulheres (Rita e Marília) nos informa que a multiplicidade de símbolos pátrios (ou mesmo imagens que não sejam as oficiosas) não são permitidas para a extrema-direita, pois a Pátria é uma construção de poder, uníssona e feita para quem obedece seus lugares e está a seu serviço.

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Fontes sobre a exposição e política da semana: revista Select, Jornal O Globo

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* artista transdisciplinar, realiza o ateliê Folleta e pesquisa o bairro do Ipiranga ao longo de 20 anos.

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