Infatigável guerrilheira: uma joia única em seu gênero¹

Por Graciela González Phillips²

O presente livro — Infatigável guerrilheira: Margarita Ortega Valdés na revolução mexicana — é uma joia, uma pequena joia única em seu gênero, pois não existe hoje, que eu saiba, outro livro dedicado a ninguém menos que a grande lutadora anarquista mexicana Margarita Ortega Valdés. Ele é valioso porque é o resultado de um interessante e belo trabalho interdisciplinar: uma combinação de pesquisa aprofundada em vários arquivos e fontes históricas com criação artística por meio de poesia, fotografia e desenho, bem como a busca de mapas e recortes de jornais da época. Algo excepcional unido à profunda paixão e ao conhecimento sob a égide da intenção amorosa e da pesquisa minuciosa nos arquivos que temos hoje. 

Ao considerar a escassez de fontes, principalmente quando se tratar de um estudo sobre uma mulher anarquista e revolucionária, parabenizo ainda mais as companheiras que produziram este trabalho. O livro não é nada academicista ou destinado apenas a um pequeno grupo de especialistas, ele foi concebido para que qualquer pessoa, mesmo que não se dedique ao assunto, possa lê-lo e apreciá-lo.

Folha de rosto do livro de 2022 da Tenda de Livros, coleção Charlas y Luchas, Infatigável guerrilheira: Margarita Ortega Valdés na revolução mexicana

Margarita Ortega Valdés sabia que sua luta era uma luta de vida ou morte, e venceu a morte porque Margarita foi fiel aos princípios anarcomagonistas. Além de ser mulher e estar nas circunstâncias peculiares do projeto magonista da época: ela era constantemente perseguida, assediada e estava sob o crivo de balas de fogo.

Eu considero Margarita um emblema. Ela foi uma lutadora que se juntou às fileiras do Partido Liberal Mexicano. Trarei os motivos dessa minha certeza, ao longo do texto. Além de ser uma lutadora incansável, ela deixou seu marido indeciso e foi para a luta armada com sua filha Rosaura, em uma época em que as comunidades indígenas não conheciam fronteiras, quando o exército insurrecional magonista era multiétnico, com intelectuais e trabalhadores como membros. 

Margarita Ortega Valdés, também conhecida como María Valdés, nasceu em Sonora em 1871, no ano da Comuna de Paris, e morreu em Mexicali em 24 de novembro de 1913, há 110 anos. Ela deixou uma vida abastada e cheia de regalias e a um marido para ir com sua filha, Rosaura Gortari, para o campo de batalha no estado da Baixa Califórnia. Ela se juntou ao PLM. Já em 1904, ela conheceu o jornal Regeneración, que enriqueceu seu desejo de luta revolucionária. Vários clubes e grupos liberais foram formados para promover a agitação, a organização, a guerra de guerrilha e a ação.

Nayeli Morquecho Estrada, na voz de Margarita, faz alusão à Greve de Cananea, que aconteceu anos antes. Sabemos sobre Margarita Ortega graças a Ricardo Flores Magón, que escreveu um artigo chamado “Margarita Ortega”, assinado em 23 de dezembro de 1911, na edição 69 de Regeneración. Nesse artigo, Ricardo narra as vicissitudes de Margarita, perseguida pelos capangas do presidente Francisco I. Madero. Há também uma breve nota no mesmo jornal, na edição 172, datada de 10 de janeiro de 1914, na qual é anunciada a morte de Margarita, sem que se soubesse na época que ela havia sido exatamente em 24 de novembro de 1913. Há também uma biografia de Margarita escrita por Ricardo, publicada em Regeneración, número 192, em 13 de junho de 1914. Vale comentar a única nota que Margarita escreveu — “Ante la Tumba de Madero” — e consta uma breve notícia intitulada: “Nuestros muertos”, aludindo à morte de Rosaura também no periódicos que Flores Magón editava. 

Tem sido uma tarefa de várias gerações interessadas no anarquismo, a tentativa de nos conectar com nosso passado, com nossa memória, porque a ruptura geracional foi completa. O Estado tenta até hoje nos separar desse passado.

Nayeli está ciente de que uma forma de nos conectar com o passado tem sido por meio dos inúmeros escritos de mulheres anarquistas em vários jornais, como Regeneración, El Hijo del Ahuizote, Libertad y Justicia e Libertad y Trabajo, além dos jornais exclusivos publicados por mulheres, como Vésper, La Voz de la Mujer³, El Obrero e Mujer Moderna. Isso citando apenas o que se produziu em México e na sua fronteira norte.  

Em seu texto, Nayeli explicita que Margarita estava sendo perseguida desde 1911, sendo levada à prisão em Mexicali. Após ser torturada por vários dias, ela foi morta a tiros. Sobre isso, Karen Márquez Saucedo nos encanta com os seguintes versos, que refletem muito bem o significado de Margarita: “mi nombre es Margarita Ortega Valdés provengo de un polen púrpura con olor a pólvora”.

O poema se conecta com o que Nayeli nos diz ser Margarita: um arquétipo da mulher revolucionária anarquista. Assim, não se pode deixar de prestar uma homenagem digna à lutadora e reconhecê-la com uma reconstrução de sua história para que sua posição anarquista, feminista e revolucionária sem precedentes seja compreendida.

É muito elegante o capítulo denominado “Caderno vermelho: coletivamente, cuidando de si, y de quem me acompanha”, no qual os autores — Dandara Luigi, Karen Márquez Saucedo, Fernanda Grigolin e Pepe Rojo — elaboram poemas, desenhos, mapas e fotografias, alusivos ao contexto, no qual Margarita Ortega e Rosaura Gortari lutaram contra o Estado mexicano sendo aniquiladas pelas forças armadas.

 

Detalhe do Caderno Vermelho

“Este país está em guerra”, diz outro dos poemas de Karen. Em outubro de 1913, Rosaura morre devido aos maus-tratos dos repressores. Margarita e o combatente magonista Natividad Cortés migram para o norte, para Sonora. São presos por ordem do Carrancista, o ex-Magonista Gallegos. Eles matam Natividad e deixam Margarita em um local onde os Huertistas a assassinariam. Após ser torturada, Margarita morre. Grigolin visita cem anos depois o lugar no qual isso aconteceu. Ela percorreu a fronteira entre o México e os Estados Unidos, por onde Margarita Ortega transitou. Como teve coragem de caminhar por aquelas paisagens secas e desérticas, onde o sol queima até a alma!

É interessante conhecer a memória histórica dos moradores dessa fronteira entre o México e os Estados Unidos. Fernanda contou para Dandara suas impressões sobre esse espaço, e elas, com os artistas Karen e Pepe, construíram esse belo projeto Caderno vermelho.

As editoras, Beatriz Silverio e Fernanda Grigolin, explicam o resultado de uma mistura de imagens históricas e da memória presente de quem vive na fronteira, ou seja, Fernanda retomou um pouco da história oral da região. O grande historiador magonista, recentemente falecido, Jacinto Barrera Basols, destaca que Margarita Ortega nasceu em Sonora e que a família logo se mudou para a colônia agrícola de Tecate, na Baixa Califórnia. Margarita se casou com Pascual Gortari, com quem teve três filhos: Rosaura, Irineo e Andrés. Margarita ficou viúva e, em 1896, casou-se com Manuel G. Démara, um vaqueiro e membro da mesma colônia em Tecate. Em seu terceiro casamento, casou-se com Félix Acevedo e mudou-se para Mexicali em 1900, casando-se por último com Natividad.

Margarita era irmã de Máximo Ortega, membro do grupo liderado por Salvador Medrano, que apoiou Francisco I. Madero no início de 1900. Essas informações foram obtidas em um livro chamado La vida que viví, de um magonista chamado Mariano Gómez Gutiérrez, cujo pseudônimo era “Blas Lara Cázares”. E são anotações feitas por Jacinto Barrera.

A seção “Reverberações revolucionarias, la repercussão da Revolução Mexicana no Brasil e na Argentina” com documentos de diversos jornais e “A revolução mexicana: magonismo e anarquismo”, o último escrito por Cassio Brancaleone traz um maravilhoso contexto sócio-histórico latino-americano no qual a revolução ocorreu. O autor oferece reflexões sugestivas sobre o significado do episódio épico, fantástico e trágico dessa revolução. 

Gostaria de me referir à alusão de Cassio às mulheres que participaram do PLM. Para o autor, outro elemento interessante a ser identificado naquela constelação libertária, que poderia ser assim denominada, é o espaço de análise e ação destinado às mulheres, historicamente além das preocupações expressas, como a dinâmica, da dominação de gênero. O movimento anarquista pode ser considerado um terreno fértil para o florescimento do protagonismo feminino nas lutas sociais e para a participação das mulheres em vários estágios da luta revolucionária, discursando, organizando, financiando, escrevendo e lutando de forma. Paralelamente às atividades de cuidado tradicionalmente reservadas às mulheres, isso é fundamental.

Nas páginas do Regeneracion, assim como em outros jornais da época, é impressionante o número de artigos assinados por mulheres. As companheiras Silverio e Grigolin comentam, com razão, que as publicações das mulheres artistas mexicanas têm muitas coincidências com as produções femininas no Brasil e na Argentina, como um rastro cultural em toda a América Latina, e dão o exemplo do jornal Nuestra Tribuna. Elas acrescentam que a história cultural do anarquismo precisa ser contada por meio de notas e artigos escritos por mulheres.

Para o Anarquismo, Margarita Ortega foi seu emblema em México, ela foi em seu tempo e ainda o é hoje, embora saibamos pouco sobre ela. Este livro fala profundamente sobre a vida e as motivações de Margarita como lutadora do projeto anarcomagonista no contexto da Revolução Mexicana.

Acredito que houve várias Margaritas Ortega que, de diferentes maneiras, lutaram pelo ideal construído com o PLM com seus jornais, seus clubes e grupos. Centenas, talvez milhares de mulheres que deram suas vidas ao lado de seus companheiros contra a exploração capitalista e algumas que acrescentaram a luta também contra o patriarcado no México. O estudo das mulheres magonistas está ganhando impulso após a comemoração, no ano passado, do 100º aniversário da morte de Ricardo Flores Magón. Estudos sobre as mulheres anarco-magonistas começaram a surgir aqui e ali. Assim, além das obras mencionadas no editorial deste livro, também existem pesquisas no México de Gabriela López Ruiz, Margarita Vázquez, Yelitza Ruiz e Luis F. Olvera.

Se o livro Infatigável Guerrilheira se tornasse um documentário ou um filme, eu imaginaria que seria ótimo se boa parte do fundo de áudio fosse composta por músicas do cantor, compositor e poeta Joe Hill, que nasceu na Suécia em 7 de outubro de 1879 e morreu nos Estados Unidos em 19 de novembro de 1915. Filho de um ferroviário, ele veio para os Estados Unidos em 1902 e se estabeleceu na Califórnia. Em 1910, filiou-se ao Industrial Workers of the World e participou de algumas greves e, em 1911, participou com os Magonistas da insurreição em Tijuana. Seu fim foi trágico. Ele foi fuzilado aos 36 anos como resultado de um julgamento obscuro e pouco convincente. As músicas de Joe Hill e sobre ele dariam um toque nostálgico e esperançoso a esse possível documentário sobre Margarita e suas memórias. 

Brindemos a este livro: Unamo-nos, compañeras luchadoras. 

 

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¹ O texto é a edição e tradução da fala que Graciela realizou no lançamento do livro em março de 2023. O evento aconteceu virtualmente e teve organização do Centro Cultural Guimarães Rosa da Embaixada do Brasil no México, sob mediação de Vania Rocha.

² Pesquisadora mexicana referência dos estudos sobre mulheres anarquistas.

³ O jornal La Voz de la Mujer que Graciela se refere é o jornal mexicano editado anos depois do Argentino, este sendo da virada do XIX. 

 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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