Sem pátria nem fronteiras, 05 de agosto de 2020

Cara Emma,

Há tempos tenho andado contigo, buscando-na como uma companheira de luta. Sei que o meu aprendizado sobre a sua existência e as suas ideias ainda não cessaram por aqui. Mas, admito que no começo do meu caminho o agradecimento a você era inconsciente.

Apenas agora me veio o lampejo de dizer por meio da escrita, pelas palavras que progressivamente se envolvem num início, meio e fim. Por esse motivo, já deixo aqui o meu prelúdio de um dos pontos comuns entre nós duas: o gosto pela reflexão e investigação que desemboca numa materialização escrita.

Para mim, as palavras que podem dar vida ao seu papel na História são: romper, transitar, lutar, revolucionar, anarquizar. Palavras que prefiguram um fluxo de ações as quais você desempenhou muito bem e que eu, ao ter tido contato com você, sinto que posso utilizá-las para me aproximar de sua identidade e contexto. Tenho certeza que a inspiração sentida por mim está no coração de muitas companheiras que também se enxergam em sua trajetória. Rememorando meu próprio passado acredito que uma hora ou outra teríamos que ser devidamente apresentadas. Como assim se sucedeu, tenho que dizer-lhe que nosso primeiro encontro foi, para mim, inquietantemente confuso.

Sim, você foi uma das figuras que plantou um incômodo no meu cérebro. Naquela época eu não tinha o entendimento do qual possuo hoje, mas sei que seus pensamentos foram um combustível para o rompimento dos estigmas impostos a mim enquanto menina para que eu, assim como você, pudesse ampliar minha consciência diante uma percepção diferente do mundo o qual faço parte.

Do seu país de origem: um primórdio para o questionamento dos valores patriarcais. Diante do lugar o qual foi sua morada durante muitos anos: o lançar-se no desconhecido e as dificuldades que vieram, a busca pela liberdade, o tornar-se anarquista, a transformação em Emma, a Vermelha, prisões, perdas, peregrinações impostas e travessias libertárias. Em nenhum momento sem deixar de pensar, refletir, escrever e modificar sua realidade, pois o seu legado de vida foi a dança anárquica como revolução.

Embora eu não tenha toda a sua experiência, gosto de pensar que me aproximo de você pelas transgressões, pelas idas e vindas nos trânsitos dos espaços, na anarquia em mim que não se encerra no subjetivo, mas que deseja anarquia em uníssono para o coletivo.

Emma, durante seu caminhar, você sentiu um estranhamento de si mesma e do mundo que a cercou e a cerceou? Um estranhamento de viver em dois espaços ao mesmo tempo? Você se percebeu num entrelugar pelo fato de ser estrangeira, imigrante e anarquista? O anarquismo, ao trazer-lhe uma projeção, pôde completar essas questões, se você as teve? Eu nunca terei tais respostas.

Sei disso. Isso porque elas são fruto do meu presente e de quem eu sou. Talvez você tivesse esses sentimentos que lhe pergunto. Talvez não. Mas vou arriscar aqui que você sentia essa diferença, da mesma forma que não me sinto parte deste mundo, o qual é virado de ponta cabeça, regurgitado, vomitado.

Fluidez é parte do nosso espírito já que a lei que queremos é a liberdade e um pensamento rebelde em nosso coração. O estranhamento não é para ser visto do ponto de vista moral, do bem e do mal, mas sim como revestimento e escudo do que somos e do que queremos construir deste lado de cá. E o anarquismo me completa neste sentido.

Neste meu tempo, apesar de aguardar um vislumbre, as coisas não vão nada bem. Mas avanços e retrocessos, fluxos e refluxos, fazem parte da História. Não há uma linearidade progressiva nesta nossa escalada enquanto seres humanos. Evoco suas palavras de que “nenhuma mudança social real aconteceu sem uma revolução” e trago também que, neste processo, o espírito da luta nunca deve morrer, mas transformar-se-á em germinação diária, cotidiana e contínua para que todos os oprimidos se levantem. Da mesma forma que este espírito permanece vivo através das rememorações de mulheres libertárias como você.

Por isso, estimo e pontuo seu valor enquanto mulher pensadora e revolucionária, que me instiga a materializar este sentimento pela escrita. Muitas perigosas como você foram silenciadas pela História e seus Agentes. No seu caso, até pelos próprios companheiros. Meu dever é continuar perpetuando seu chamado assim como o de muitas outras mulheres revoltosas que foram esquecidas pelo tempo. Pois que sejamos as perigosas das Américas, como você, como Dandara e Luiza Mahin, Lucy Parsons e Marielle. Do globo inteiro como Louise Michel, Lucía Sánchez Saornil e Arian. O mundo se transfigura em um cenário muito mais bonito à medida que o imaginamos e lutamos para modificá-lo.

Nesta minha saudação redigida, a palavra final para você é: Liberdade, pois ela não descerá ao povo, mas o povo deve elevar-se à Liberdade.

Amor e Anarquia,

Bruna


Bruna Novais é anarquista e transeunte, [quase] historiadora.

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