Sobre o Amapá, geografia e urnas eletrônicas

Por Fhoutine Marie*

Eu cresci no Amapá. A família do meu pai é de lá e a da minha mãe – que é de Belém – morou muitos anos em Macapá. Minhas avós eram vizinhas e meus pais se conheceram crianças. Foi onde meus pais moraram logo após se casar e onde eu morei de 1988 a 1998, quando fui pra Belém fazer faculdade.

Eu não vou mentir dizendo que não cresci querendo ir embora para uma “cidade grande”, eu fui embora antes de completar 18 anos, convicta de que não voltaria mais a morar lá. Mas, todo mundo que sai de cidades pequenas eventualmente tem o seu momento Cinema Paradiso de se reconciliar com o lugar onde vc cresceu.

O meu foi quando o meu pai morreu, há dez anos, e nós levamos ele pra descansar na cidade que ele amava. Ele foi velado num salão em frente ao Rio Amazonas por familiares, o povo da igreja, os políticos, os cachaceiros da nossa rua e a galera da escola de samba (sim, papai era muito popular).

Lá no começo dos anos 90, nós passamos por um racionamento de eletricidade (nada a ver com o apagão do governo FHC). A energia funcionava por horas alternadas de acordo com os bairros da cidade.

Geralmente faltava água junto, então era preciso fazer tudo nas horas que tinha energia e água – deixar a comida pronta, a roupa lavada, encher as panelas e bacias com água – ceis sabem que no Norte a gente toma mais de um banho por dia, né – borrifar o quarto com Detefon pra matar os carapanãs.

A gente sentava no pátio de casa – a cidade era outra, dava pra ficar sentado na frente de casa mesmo com a cidade sem luz – e ouvia minha mãe e meu pai contarem histórias de antigamente e comentarem as razões de estarmos naquela situação. Tinha uma briga entre os políticos locais envolvendo a compra de geradores, uns queriam equipamento russos – que não funcionavam na temperatura local – e outros queriam trazer uns usados de Camaçari/BA.

No fim, foi esse segundo remendo que resolveu a situação, mas parece que não houve investimentos ao longo de 30 anos e deu no que deu. Eu continuo mantendo contato virtual com pessoas do Amapá, amigos e familiares. E me sinto desolada ao acompanhar as notícias do Estado que durante tanto tempo foi minha casa.

Eu lembro que uma vez, na novela Meu Bem, Meu Mal, fizeram um comentário sobre o Amapá ser o fim do mundo que causou indignação na cidade. Porque ali é o meio do mundo, não o fim. O problema da chacota era que esfregava na nossa cara como o restante do Brasil via o Estado.

Eu sempre conto que tomei um choque quando vim pra SP, porque de cara eu comecei a frequentar espaços em que as pessoas supostamente receberam boa educação formal, mas eram carregadas de ranços preconceituosos e/ou total desconhecimento da Geografia do país. Hoje o pessoal sabe um pouco mais sobre o Pará porque ele virou um destino turístico hypado, mas no geral continuam sem saber nada sobre o Amapá e a região Norte em geral.

A crise no Amapá coincidiu com a eleição dos Estados Unidos. Eu, que vivo pelos memes, não pude deixar de notar que com frequência as pessoas mencionavam exportar para os Estados Unidos “urnas eletrônicas e professores de Geografia.” Acontece que antes de recomendar conhecimento geográfico pros outros, a gente poderia aproveitar e conhecer um pouquinho o país onde vive para além do Sudeste.

Falando em conhecimento geográfico, urna eletrônica e Brasil, uma curiosidade: o Amapá foi o primeiro Estado brasileiro a realizar uma eleição 100% eletrônica. Mas algo me diz que a maioria de vocês não fazia ideia disso.

Fhoutine Marie é escritora, anarcofeminista e cientista política.

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