Casas invisíveis

Por Mariana Guimarães*

Quando lavo a louça eu faço uma cuia com a mão para juntar bastante água e, lentamente, vou enxaguando as vasilhas, faço também um quatro dobrando uma perna na outra.

Em equilíbrio, vou esvaziando a pia.

As gavetas da sala de jantar guardam pequenas coisas que não sei do que falam, e sempre tem um enfeite de Natal para lembrar de não esquecer.

No quarto de casal, sob a cama do lado esquerdo, há um buraco, como uma saída de emergência para dias de tédio.

O quarto da menina guardava, embaixo da cama, uma grande bacia rosa desbotada, bem grande, que carregava um futuro: bonecas loiras sem roupa e um boneco amedrontado.

É impressionante o número de remédios vencidos no armário da cozinha. O armário é muito estreito, mas o conteúdo, profundo.

Tem muitos tapetes no apartamento, em todos os cômodos. É  como se caminhássemos sempre nas nuvens.

Nunca entendi o Buda ao lado dos ratos de Limoges, mas sempre gostei de vê-los juntos.

O bibelô é um grande bibelô.

Na arca da sala, junto dos paninhos, tem copinhos de licor que jamais foram usados.

No alto do barranco tem uma casa com janelas azuis, tem rancho e nossa senhora sempre passa por lá.

Não suportava a beleza dos arranjos de flores. Eram sempre de uma beleza inacessível, mesmo diante dos olhos.

Os paninhos esperam na gaveta, junto às traças.

Minha avó pintava pedras, no tempo em que era feliz.

Passou um mascate e vendeu um cobre-leito azul celeste com bordados de Ibitinga. A cama tem roupa de sair e de ficar em casa, mesmo que ela não saia.

Comprei no carnê, para pagar em vinte vezes, uma colcha de seda toda bordada; para combinar fiz umas almofadas de crochê com linha Cléa branca, só usava em dias especiais. Um dia a colcha mofou. Era uma gente sem capricho.

As  louças na pia impõem um ritmo ao caos da cozinha. Como um ritornelo.

Aliás, máquina de lavar louça é útil?

Água sanitária é o combustível da morada, clareia as manchas domésticas.

Após o almoço limpava cotidianamente com álcool 70 os armários, o fogão e as mãos. Eram medidas para não se contaminar demais.

Tem uma pilha de potinhos de plástico no armário da cozinha, cada um será testemunha de um desencontro.

Houve um tempo em que era bonito esfregar cera vermelha no chão e deixar-se contemplar na imensidão das ondas da enceradeira.

Acho mesmo essa parte da enceradeira uma beleza.

No jardim tem uma trepadeira que se chama lágrima de Cristo. Trepa lentamente e desperta a cada primavera.

Nunca foi pecado roubar flor e colecionar latas de banha plantadas no quintal.

A toalha no banheiro úmido fedia demais, os papéis saltavam da lixeira, assim foram felizes, por um tempo. O odor impregnou-se nos corpos.

Atravessava a parede um vulto amarelo de mulher distorcida, revirada e rasgada como velhos papéis de parede que insistem em nos habitar.

Mariana Guimarães é artista, mãe, pesquisadora e mediadora de uma educação pelo fio

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