À todas aquelas que me habitam e que não dançam nem cantam, ainda

Por Karlla Girotto*

Somos nós mesmas vindas do nosso passado remoto, ancestral, em outras formas de vida, a te dizer: não espere aquele olhar do espelho que vai te mostrar que o tempo passou, não espere as vielas sujas cheias de vendedores barulhentos que lhe tentarão vender a ti mesma. Não! Olhe estes teus ombros retesados, o teu quadril espremido, olhe estes teus passos apressados. Põe atenção em ti mesma, observe este corpo que se atraca com a realidade em desejos e quimeras mas observe primeiro o corpo que se atraca em luta. Quantos corpos compõem um corpo que se atraca em luta? Como podemos nós, todas e juntas, abraçar em transe de alegria e graça estas nós mesmas e desfazer as tranças e nós dos músculos espremidos que lutam?

Quantas de nós ainda mantêm-se em escravidão, enclausuradas e sem conseguir abandonar as fortalezas da realidade? Onde e como nos deixamos ser colocadas ou nos colocamos para dentro destes muros? Dança e canta, vamos dançar este redemoinho, o corpo que se dissolve em si mesmo subindo como fumaça de incenso. Venha, receba estas palavras. Estes olhos, ah, eu os conheço – são aqueles a nos espreitar desde o passado, de dentro de nós mesmas. Não tenhamos mais medo, vamos nos juntar, dancemos!

*****

Eu vi você cantando a coisa mais bonita e que penetrou o meu corpo pelos poros. Você cantava e o seu olhar atravessava a sala, varava as paredes e se fundia com o céu e o ar de fora, você se confundia com o quê eu não via e o seu canto me confundia. Pedaços soltos de mim mesma passaram flutuando em frente à todos os presentes, eu ali toda me dissolvendo em fumaça perfumada. Você cantava e todas as mulheres do mundo, multidões delas, cantavam em mim. Todas elas se levantaram juntas em mim num pulo, um salto de tempo distante, as mais novas, as crianças, as velhas – todas elas. Eu entendi, então, o texto da pedra escrito há bastante tempo. Você já tinha cantado para mim antes, você já estava lá fora, fundida no tempo e na vida, me chamando cantando.

Eu te segui anos atrás, entrei numa floresta com você e eu carregava uma tigela de arroz perfumado e eu te oferecia esta tigela. Eu entendi que te sigo desde sempre, que te sigo desde a primeira matéria do mundo que também é minha matéria e que também está em mim. Mas eu não sabia ainda conversar com o texto que está sempre perto de minhas orelhas, sussurrado em minhas orelhas. Eu o ouvia mas não sabia o que fazer com ele. O seu canto me ensinou que é só abrir a boca e deixar o texto entrar e cantar. Cantar é o texto possível. E eu cantei junto, os pedaços de uma vida passado-presente subiram e flutuaram ainda mais alto, foram subindo e as estrelas os recolheram. Eu pude ver como uma estrela é unida à outra por finos fios de crochê e tricô de linhas prateadas e eu cantei e chorei porque eu senti um mundo muito bonito, senti a beleza do mundo me atravessar e somente pedaços que precisavam ficar, ficaram – quase tudo foi recolhido pelas estrelas, fiquei com muito pouco, nem pernas eu tinha mais. Mas as mulheres todas de dentro de mim cantaram tão alto que você ouviu e cantou ainda mais bonito, respondendo-nos. E eu não tive medo de não poder andar nunca mais porque nós voávamos. E você, sempre serena, cantando sem nos olhar. Mas sim, você nos olhou mas você só me viu quando eu me fundi com o ar e o céu porque você não olhava uma configuração de corpo. O que você olhava e via era o através, o tempo que está em mim, que eu carrego na matéria e eu vi o tempo que está em você. E eu passei então a ter um cuidado atencioso com tudo o que é o em volta de alguém e em mim. Eu passei a perceber os textos nas orelhas das pessoas e os cantos presos nas bocas e nas gargantas de textos que não conseguem entrar nem sair. Eu passei a perceber também como é preciso acariciar as costas para que elas se abram e possam receber o tempo no através e a reparar como é que o tempo entra no através e vaza pela testa, bem no meio dos olhos e alcança o através de outra pessoa. E pude então saber quando estão observando o meu através e sorrir. E só assim fiquei tranquila ao entender que as estrelas estavam recolhendo todo o saber que eu não quero saber mais.


*Karlla Girotto é artista, professora, pesquisadora e escritora.


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Ontem tive uma conversa muito profunda com Karlla Giroto, artista, professora, pesquisadora e escritora. Foi um momento muito especial. Ela leu seu texto inédito preparado para o blog da Tenda de livros. Sinta o trecho inicial do texto: “Somos nós mesmas vindas do nosso passado remoto, ancestral, em outras formas de vida, a te dizer: não espere aquele olhar do espelho que vai te mostrar que o tempo passou, não espere as vielas sujas cheias de vendedores barulhentos que lhe tentarão vender a ti mesma. Não! Olhe estes teus ombros retesados, o teu quadril espremido, olhe estes teus passos apressados. Põe atenção em ti mesma, observe este corpo que se atraca com a realidade em desejos e quimeras mas observe primeiro o corpo que se atraca em luta. Quantos corpos compõem um corpo que se atraca em luta? Como podemos nós, todas e juntas, abraçar em transe de alegria e graça estas nós mesmas e desfazer as tranças e nós dos músculos espremidos que lutam? Dá uma passadinha no blog e confere inteiro. O instagram ainda não permite A tenda de Livros subir a live inteira. #blogdatenda #leiturafeminista #karllagirotto

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