Documentos e a gramática da inocência: Morena

Por Marina Feldhues*

Será o Registro de Nascimento uma prova incontestável de um fato consumado?

Eu nasci, filha de, no lugar de, na data de, do gênero de, da cor de… marcadores sócio-políticos, temporais e espaciais me determinaram num pedaço de papel.  Um desses marcadores foi: “cor Morena”. Na hierarquia racial fundante e mantenedora das estruturas relacionais coloniais deste território Brasil, fui etiquetada de Morena. Tentaram, quando nasci, me apartar de minhas ancestrais negras e indígenas.

 Será isso um passado selado?

Somos treinados na gramática dos documentos. Lemos os documentos como se fossem a exatidão entre o dito e o acontecido. Depositamos os documentos em arquivos: é passado. Meu primeiro documento, o registro de nascimento, era uma arma colonial.

 Não seria o meu Registro uma evidência criminal?

Afinal, ele atesta que o colorismo, em 1982, era protocolo de Estado. Ele expõe a primeira violência que sofri, praticada pelo Estado, o qual até hoje não foi responsabilizado. Fico pensando no conjunto de ações necessárias para que um representante do Estado escrevesse num pedaço de papel, que legitima minha existência para esse mesmo Estado, que eu posso ser categorizada, pelo tom da minha pele, como “Morena”.

Eu não compactuo com a gramática do meu Registro.

Recuso sua taxonomia colonizadora. Minha realidade não corresponde àquela que me foi determinada neste documento0. Não a aceito. Como cidadã de um mundo compartilhado, não posso compactuar com a violência que tal inscrição provoca, no meu e nos demais corpos classificados racialmente pelos colonizadores de ontem e de hoje.

Descolonizar os documentos implica não acatar a temporalidade que lhes é atribuída como “passado selado.

”Documentos são elementos do agora. Em que pese sua produção ter sido realizada no ontem, seus efeitos continuam. Meu registro de nascimento é um elemento constitutivo da composição do que vivo e do que viverei. Portanto, ele é passível de minha imagem-ação política.

Descolonizar os documentos é reparar os danos provocados.

 Talvez, o primeiro passo seja enxergar a violência contida em cada um desses papéis e lê-las não como o que aconteceu, mas como o que não deveria ter acontecido, o que não deveria ter sido possível. Quem sabe assim a gente volte sonhar com, e a lutar por, o que poderia ter acontecido de outro jeito.


Marina Feldhues transita entre textos e imagens anticoloniais.

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