Hora Iluminada

Luciano San-Saor [Lucía Sánchez Saornil]

Tradução Thiago Lemos Silva*

Um dia, repentinamente, sem esperar, pensamos no fim. E ficamos embrutecidos, atordoados, olhando as coisas com um gesto idiota, como se tudo manifestasse a nós, diante dos nossos olhos pela primeira vez.

Pensamos que teremos que ir, um dia, deixando sobre a mesa o livro entreaberto com uma lâmina cintilante no meio como registro da última página que nos emocionou; deixando em sonhos, apenas, aquela viagem tão desejada a uma longínqua cidade que nos embriagava com seu canto de sereia à distância.

E o olhamos todo atônitos, um pouco estupefatos, ante este gesto insuspeito que veio nos subjugar repentinamente, como se estivéssemos observando o crepúsculo e alguém apertasse de repente o botão da luz elétrica que entra em nossos olhos seus deslumbramentos, nos deixando cegos, vacilantes como se tivessem enfiado um ferro quente em nossas pupilas.

Olhamos com gesto singular o que nos rodeia, buscando com empenho os fios que nos unem a cada coisa, e tudo parece se perder em distâncias inabordáveis, e descobrimos um aspecto novo ou uma puerilidade em cada objeto. Assombra-nos não ter reparado até então no retrato este parente de orelhas enormes, que parece uma mariposa dissecada atrás da água velha do vidro esverdeado; olhamos surpresos o fundo do espelho, onde se retrata a rua distante sustentada milagrosamente por um escorço inverossímil como vista na tela inquietante de um pesadelo. E pensamos: qual será o dia de tudo isto? Nós iremos, mas poderá sobreviver sem nós o que nos rodeia? Não levaremos conosco o sol adormecido nos olhos? A água continuará apagando a febre nas bocas quentes dos amantes?  Não vão esperar as frutas, inutilmente, a boca voraz até que super maduras rodem na poeira, em sua plenitude como outras bocas novas trêmulas de desejo, antes de se acabarem definitivamente?

Os ponteiros dos relógios, já sem sentido, pararão no vazio do tempo que seguirá nossa partida?

E consideramos a tudo triste, como se quiséssemos apertar a última gota de cada sumo, aspirar o último átomo de todas as essências, esgotar todas as coisas, porque supomos que então, no momento póstumo, nos atormentará o livro que deixamos na metade da leitura sobre a mesa; nos torturará não saber se a cortina de renda que matizava a cor do nosso quarto era malva ou violeta, lembrando que passamos uma tarde toda querendo encontrar a quintessência daquele matiz tão ambíguo.

E nos abalará aquela aliança que, em certa mão feminina, reluzia fracamente toda uma constelação, porque nos empenhamos em recordar o número dos seus diamantes. E abriremos os olhos desmedidamente, querendo aumentar sua medida, para recolher neles toda a beleza do mundo. Assombra-nos não ter pensado nisso, antes. Como pudemos deixar que tantas e tantas coisas belas passassem ao nosso lado, sem tocá-las? Como deixamos que se perdessem tantos estalos de sinos dos relógios solenes das estudantes? Como não colhemos tantos beijos que floresceram espontaneamente sob nossos olhos?

E uma pena infinita vem até nós de nosso gesto lírico, sutilmente desdenhoso, que enviamos sempre para as estrelas enquanto que abaixo dele passava a vida, com todas suas grandezas e todas as suas misérias, com todos seus prantos e todos os seus risos, e entre seu tumulto cotidiano e absurdo ia um tesouro apreciável de emoções que deixávamos se perder.

E neste momento iluminado, superado nosso desdém, fazemos o propósito de corrigir, de inclinarmos a recolher sobre o solo da terra, o doce e fragrante otimismo de viver.

______

____

Publicado originalmente em: Revista Plural, Madrid, n.3, 1925.

Thiago Lemos: militante anarquista, professor de história e livreiro ambulante.

Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*