Juana Rouco Buela: uma mulher à frente do seu tempo?

Desenho de Dandara Luigi

Por Letícia Nunes de Moraes*

Você conhece a história de Juana Rouca Buela? Não? Eu também não conhecia até ler o livro História de um ideal vivido por uma mulher e textos escolhidos de Juana Rouco Buela, lançado há três meses pela Tenda de Livros, é o segundo volume da coleção Charlas y Luchas. A primeira parte da edição é a autobiografia dessa anarquista hispano-argentina, publicada pela primeira vez em 1964. A segunda parte reúne textos selecionados em sua maioria do folheto Mis Proclamas.

Livro passeia pela biblioteca da Tenda de Livros

Deliberadamente, em suas memórias, Juana Rouco seleciona episódios que considera relevantes em sua trajetória política como militante anarquista e exclui sua vida privada “tanto quanto possível”, como explica logo nas primeiras linhas. Uma pena! Para nós, historiadoras de hoje, seria um documento valiosíssimo sobre como nossas antecessoras viveram afetivamente em suas vidas privadas. Entretanto, a história de Juana mostra que ela, como tantas outras mulheres, não ficou restrita ao mundo doméstico. Ao contrário, muitas foram bastante atuantes, inclusive politicamente.

Detalhes de uma dupla de páginas do livro publicado pela Tenda de Livros.

A sua narrativa segue rigorosamente a sequência cronológica dos eventos, o que pode tornar os textos monótonos, sem grandes desafios interpretativos para quem lê. Juana, contudo, adota um tom de diálogo com seus leitores, e sua trajetória é tão intensa e agitada que é preciso estar atenta para não se perder em tantas viagens, congressos, palestras, fugas, prisões, produções de jornais, alegrias e tristezas. A maior dessas, sem dúvida, foi a traição e o abandono pelo companheiro mais amado, o pai de seus filhos, que partiu em 1930, após treze anos de convivência. O sofrimento foi tão grande que quase lhe perturbou a mente e a paralisou por muito tempo, como um barco à deriva, recorda-se.

Nos mares revoltosos por onde navegou — e foram tantos: Espanha, Argentina, Uruguai, Itália, França, Brasil —, Juana sempre levou consigo como “única bússola” os ideais libertários fundados na beleza, no amor e na igualdade social para todos os seres na Terra. Sua principal motivação para publicar suas memórias foi informar as gerações posteriores sobre a história do movimento anarquista no mundo, que foi tão ativo e profícuo nas primeiras décadas do século XX, mas estava na época da primeira edição do livro “entre quatro paredes” na semiclandestinidade. Momentos a que Juana assistiu e no qual teve atuação incansável.

Nascida em Madri, na Espanha, em 1889, Juana Rouco Buela ficou órfã de pai aos quatro anos. Muito cedo precisou começar a trabalhar para ajudar a mãe, que era costureira, a sustentar a casa. Por isso não frequentou a escola quando criança. Seu irmão mais velho, Ciríaco, passou a morar com parentes em Buenos Aires.

Logo que pôde, Ciríaco levou a mãe e a irmã, então com onze anos, para viver na capital argentina, e assim a família se viu reunida novamente. Com o irmão, Juana passou a participar de reuniões anarquistas e de operários nas quais se realizavam diversas atividades e conferências. Entusiasmada, sentindo que aquilo tudo já estava “no sangue”, decidiu aprender a ler e escrever. Desde então, cada vez mais, o desejo de saber, de adquirir conhecimentos tornou-se para aquela jovem libertária uma “maravilhosa obsessão”. Não chegou, porém, a se formar, e em muitas ocasiões se lembra de que o diploma lhe fez falta, sem nunca ter sido um empecilho para agir, como fez desde os primeiros encontros.

Seu “batismo de sangue” na militância aconteceu em 1904, em Buenos Aires, quando Juana Rouco tinha quinze anos. Em meio a um comício em praça pública, organizado pela Federação Obreira Regional da Argentina (Fora) para a defesa dos direitos dos trabalhadores, no Primeiro de Maio, o corpo agonizante de um trabalhador do sindicato dos barbeiros foi amparado, depois de alvejado pela polícia, cuja violência interrompeu o ato antes mesmo do primeiro discurso.

Preciso lhe dizer: a leitura dessa cena me fez lembrar do primeiro comício de que Patrícia Galvão, a Pagu, participou em Santos, alguns anos mais tarde, em 1930, como militante comunista. O primeiro discurso seria dela, mas logo o evento foi dispersado pela polícia que chegou atirando e atingiu seu companheiro Herculano. Ao invés de fugir, Pagu acolheu o corpo agonizante do amigo e foi presa, o que a fez conhecida como “a primeira mulher presa por motivos políticos no Brasil”. A experiência a marcou tão profundamente que inspirou um dos capítulos de Parque industrial, publicado em 1933. Nessa obra Pagu mostra a dureza da rotina de trabalho das jovens costureiras diante dos teares nas fábricas ou nos ateliês, dormindo e comendo pessimamente, muitas aliando trabalho e militância.

As cenas do “romance proletário” me fizeram voltar à história de Juana Rouco e da brasileira Maria Antônia Soares, que, como Pagu, também foram presas diversas vezes por razões políticas. Contudo, entre as brasileiras, Maria Antônia Soares é a primeira mulher detida por motivação política de que se tem notícia, dez anos antes de Pagu, durante uma greve geral. Seus escritos estão no livro Unidas nos lancemos na luta, primeiro volume da coleção Charlas y Luchas, que reúne histórias de mulheres anarquistas dedicadas a escrever e publicar como práticas libertárias.

Aliás, uma confusão muito comum entre Pagu e Maria Antônia Soares está em uma fotografia publicada na revista Cigarra, em que uma mulher discursa de braços abertos a uma audiência predominantemente masculina, no comício de Primeiro de Maio de 1915. Quem já não ouviu ou leu que essa mulher seria Pagu? Pois era Maria Antônia Soares. Pagu tinha apenas cinco anos à época! 

Rio de Janeiro por Dandara Luigi, desenho pertencente ao livro

Como as trabalhadoras do Brás, retratadas por Pagu, Juana Rouco muito cedo aprendeu com a mãe o ofício da costura, geralmente transmitido de uma geração à outra. No Brasil, onde morou durante quatro anos, de 1914 a 1918, Juana trabalhou numa fábrica de camisas finas masculinas, que até então eram importadas de Portugal, mas, devido à guerra, novas fábricas substituíram as importações. Como tinha qualificação, pois em Buenos Aires já tinha trabalhado numa passaria e engomadoria, não foi difícil se empregar e, claro, continuar ecoando os ideais anarquistas.

Seu relato evidencia também o quanto era eficiente a rede de apoio construída entre as federações obreiras pelo mundo, o que lhe garantiu sempre abrigo, proteção e novos espaços para expandir a propaganda libertária. Naqueles primeiros anos do século XX, a classe operária era constituída em grande parte por mulheres e crianças, sobretudo no setor têxtil, mas liderada por homens. Essa realidade não passou despercebida de Juana, que, desde suas primeiras ações, esteve junto às mulheres, como, por exemplo, na criação do primeiro centro feminino anarquista, fundado em 1907, na Argentina.

Juana Rouco via entre as libertárias muitas com “valor e capacidade de ação muito grandes”, mas “quase sempre foram ignoradas” e nunca incentivadas a lutar, o que faziam com coragem própria. Lembra que sempre denunciou a atitude dos companheiros e se manteve ao lado das mulheres. Em 1921, esteve em Necochea, uma cidade marítima na Argentina, e ali encontrou um grupo de mulheres no qual viu conhecimentos e habilidades ideológicas que não havia encontrado em outros lugares por onde passou. Logo estabeleceu profunda afinidade com aquelas companheiras e decidiu se mudar para lá, o que fez em janeiro de 1922.

Em Necochea, formou o Centro de Estudos Sociais da Mulher e fundou Nuestra Tribuna: quincenario femenino de ideas, arte critica y literatura. Essa “hojita do sentir anárquico feminino” foi um dos projetos que mais orgulho deu à Juana, que se referia a ela como um “filho literário” por meio do qual mostrou ao mundo que as mulheres são tão capazes quanto os homens. Apesar de se afirmarem contrafeministas por rechaço às pautas liberais, essencialmente fundadas na defesa dos direitos individuais, em especial, na época, a luta pelo sufrágio feminino, as autoras dos textos publicados em Nuestra Tribuna contradiziam os discursos médicos e científicos que procuravam provar a inferioridade feminina, como já tinha feito anteriormente a brasileira Maria Lacerda de Moura.

Então, minha amiga, se você não conhecia Juana Rouco Buela, leia as memórias dessa mulher que, desde menina, viveu pelo anarquismo, que, em suas palavras, “é todo beleza e bondade”. Igualmente Pagu lembra em sua autobiografia que na sua “nebulosa infância, a sensitiva já procurava a bondade e a beleza.” Nem Patrícia Galvão, nem Juana Rouco Buela ou qualquer outra revolucionária foram, como se costuma dizer, mulheres “à frente do seu tempo”. Cada uma lutou — como nós lutamos — com as potencialidades e limitações de cada época. É preciso repensar permanentemente a história dos feminismos, com atenção mais ao que nos aproxima e nos fortalece, e menos ao que nos rivaliza, nos distancia e nos enfraquece. Sem esquecer de respeitar as diferenças, sabemos.

Os textos de Juana Rouco Buela, além de revelarem o olhar sensível dessa anarquista, sempre atenta às pessoas e ao ambiente, faz repensar a história dos feminismos na medida em que a narrativa “das ondas” não abarca a luta libertária. Por muito tempo a historiografia dedicada aos movimentos sociais do começo do século XX destacou a centralidade da Revolução Russa e reproduziu o banimento dos anarquistas, depois que estes passaram a ser alvo da repressão do novo governo bolchevique. A coleção Charlas y Luchas tira dos arquivos as histórias das mulheres anarquistas e põe de novo nas ruas o ideal libertário praticado por elas, como tanto almejou Juana.

REFERÊNCIAS:

BUELA, Juana Rouco [et al.]. História de um ideal vivido por uma mulher e textos escolhidos de Juana Rouco Buela. São Paulo: Tenda de Livros, 2022.

LUDMILA, Aline [et al.]. Unidas nos lancemos na luta: o legado anarquista de Maria A. Soares. São Paulo: Tenda de Livros, 2021.

FERRAZ, Geraldo Galvão [org.]. Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. São Paulo: Agir, 2005.

GALVÃO, Patrícia. Parque Industrial: romance proletário. São Paulo: Linha a linha, 2018.

GOLDMAN, Emma. Minha outra desilusão da Rússia. Verve, n. 11, p. 109-122, 2007. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5060/3588. Acesso em: 20 jan. 2023.

MOURA, Maria Lacerda de. A mulher é uma degenerada. São Paulo: Tenda de Livros, 2018.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

SOUZA, Ingrid Souza Ladeira de. Reflexões preliminares acerca da experiência feminina no anarquismo argentino: o periódico Nuestra Tribuna e a disputa entre os feminismos (1922-1925). Revista Espaço Acadêmico, n. 234, mai-jun, 2022. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/61382/751375154078. Acesso em: 10 jan. 2023.

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* Pesquisa a vida e obra de Patrícia Galvão, a Pagu, é historiadora, professora e revisora de textos.

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