O que nós, hoje, podemos aprender com o legado de mulheres anarquistas?*

* Jaqueline Moraes de Almeida (Graduada e Mestra em História pela Unicamp; doutoranda em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra; Investigadora do CEIS 20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX) com desenho de Caio Paraguassu

Unidas nos lancemos na luta¹, livro lançado pela Tenda em 2021, insere-se no projeto “Charlas y luchas”, cujo objetivo é “desvelar a história das mulheres anarquistas que escreveram, produziram e editaram publicações”. O volume reúne transcrições de documentos assinados por Maria Antônia e Angelina Soares, e pelo Centro Feminino de Jovens Idealistas. Tais documentos – levantados por Samanta Colhado, Beatriz Silvério, Fernanda Grigolin e Aline Ludmila – foram trabalhados a partir de uma metodologia proposta por Beatriz Silvério e Fernanda Grigolin, e, depois, confrontados e organizados no livro a partir das contribuições de Nabylla Fiori de Lima. Revivido e muitas vezes ressignificado por urgências do tempo presente, o conjunto documental vem acompanhado de reflexões sobre anarquismo, circulação transnacional de ideias por meio de periódicos, emancipação feminina. Apresentadas no texto introdutório de Aline Ludmila, as etapas de construção do livro, tão caras “quanto a sua materialização” (p. 9), revelam os bastidores de um projeto que não apenas referencia aspectos do anarquismo e do feminismo, por exemplo, mas que se desenvolve justamente como uma ação destas lutas. 

Desde algum tempo e, sobretudo, com o fortalecimento dos movimentos feministas, a partir da segunda metade do século XX, algumas investigadoras, como a historiadora francesa Michelle Perrot, chamam a atenção para a suposta ausência feminina em registros históricos e também na produção historiográfica². Suposta ausência, frequentemente mal interpretada (intencionalmente ou não) ajudou a legitimar uma narrativa que menorizava o sexo feminino, subalternizando-o socialmente ao sexo masculino. É por isso que, na difícil tarefa de recuperar os legados de mulheres, os impressos adquirem importância significativa, uma vez que foram utilizados (intencionalmente ou não) por elas como instrumento de expressão, revelando suas ideias e projetos coletivos, como o fez Antônia Soares; domínio da escrita e erudição, como o fez Júlia Lopes de Almeida (1862–1934), por exemplo, e várias outras escritoras localizadas na transição entre os séculos XIX e XX. Independentemente de seus objetivos, a escrita pública feminina – pelo menos até meados da primeira metade do século XX – é uma evidência da agência de mulheres que, de alguma forma, desafiaram os padrões de conduta vigentes baseados na diferença biológica entre os sexos. Ainda assim, é imprescindível observar que, num país com índice elevado de analfabetismo – como era o caso do Brasil no início do século XX –, a escrita e, sobretudo, a escrita publicada era um privilégio de poucas pessoas, o que torna ainda mais complexo o trabalho de recuperação de legados de mulheres pobres e em situações de vulnerabilidade. Por todas as razões apontadas, relacionadas às desigualdades de gênero – sendo estas complexificadas pelas por outras desigualdades, como a de raça e de classe –, Maria Antônia Soares e outras anarquistas acreditavam que a emancipação feminina e, por conseguinte, da humanidade viria por intermédio de uma educação voltada às práticas da liberdade. Graças aos textos que assinou e publicou em periódicos nacionais e internacionais, Maria Antônia Soares – a mulher operária que protagonizou a distinta fotografia publicada em A Cigarra (maio de 1915) – pôde ser identificada e estudada, ajudando-nos a contar outras histórias sobre a atuação operária e sobre os movimentos pela emancipação das mulheres, por exemplo, no contexto das décadas iniciais do século passado.

De acordo com sua certidão de óbito, Maria Antônia Soares nasceu em São Paulo e morreu no Rio de Janeiro, no dia 30 de abril de 1991, aos 93 anos. O documento indica, também, que a falecida era aposentada, viúva de Manoel de Campos (c.1891–1925) e mãe de um filho maior. Portanto, os longos anos de vida de Antônia Soares coincidem com os anos do “breve século” XX, período compreendido, segundo Eric Hobsbawm, entre a Primeira Grande Guerra e o colapso da URSS³. Então, como terá sido, para uma mulher anarquista movida por ideais libertários, habitar um mundo que permitiu a banalização do mal? Em que medida é possível separar as vidas pública e privada de pessoas como Antônia? Como ela, em seu íntimo, lidou, por exemplo, com a morte prematura de seu companheiro, em 1925, quando supostamente teve de assumir toda a responsabilidade pelos filhos Álvaro (na época, com 2 ou 3 anos) e Eunice (com 1 ou 2 anos)⁴? 

Os eventos gerais e particulares que transpassaram a trajetória de nossa protagonista podem explicar as transformações relacionadas à sua atuação enquanto militante. Os textos assinados por Antônia e disponibilizados em Unidas nos lancemos na luta localizam o envolvimento assíduo da anarquista com a imprensa libertária e/ou operária especialmente entre os anos de 1912 e 1922. Neste período, além de ter utilizado a escrita pública com vistas à “defesa de ideias transformadoras” (p. 99), Antônia atuou no desenvolvimento do Centro Feminino de Jovens Idealistas (fundado em 1913); foi representante deste no I Congresso Internacional da Paz (1915); participou de grupos teatrais anarquistas; foi alvo da polícia paulistana, estando presa em, pelo menos, duas situações (1920 e 1921). Como bem destaca o livro – inclusive com sensíveis desenhos de Dandara Luigi –, a trajetória de Antônia e a de seus familiares e amigos próximos embaralham e confundem as fronteiras do público e do privado – ao menos durante o recorte temporal citado. No sobrado da Rua da Moóca, 292-A, viveu a família Soares, os sonhos e os projetos coletivos que evocavam um futuro livre e bom para todas as pessoas. Mas o que terá acontecido à Antônia Soares entre os anos de 1925 e 1993? O que tal silenciamento pode significar? Em que medida a maternidade solo modificou sua militância? Talvez a leitura de Unidas nos lancemos na luta e a curiosidade a respeito da biografia de sua protagonista mobilizem pesquisas futuras que possam, enfim, responder a estas e outras indagações. Por ora, há muito o que podemos aprender com o breve conhecido legado de Antônia Soares.

Voltando à Michelle Perrot… Se sua produção sobre as pessoas excluídas da história foi essencial à transformação da maneira como se pensava e fazia historiografia, hoje, uma profusão de estudos – sobretudo de autoria feminina – sobre mulheres (no plural! – incluindo mulheres negras, indígenas, lésbicas, transsexuais etc.) evidencia a urgência de ressignificarmos o passado a fim de construirmos outras possibilidades de futuro inspiradas pelos legados que, até então, estiveram apagados dos registros oficiais. Então, nesta nova dinâmica, intelectuais e feministas negras, como bell hooks⁵ (1952–2021) e Lélia Gonzalez⁶(1935–1994) recuperam memórias de mulheres como Sojourner Truth (c.1797–1883) e Maria Firmina dos Reis (1822–1917); assim como anarcofeministas vêm recuperando exemplos de mulheres que, em seus ideais e lutas, não consideraram apenas a questão da classe, mas também a do gênero na compreensão das formas de violência estrutural que afetavam a sociedade moderna. Na Espanha, por exemplo, já são vários os estudos sobre o grupo Mujeres Libres; e, na região da Andaluzia, por exemplo, Gloria Espigado Tocino vem trabalhando com memórias de mulheres como María Josefa Zapata (1822-c.1878) e Margarita Pérez de Celis (1840–1882), escritoras que utilizaram as teorias de Charles Fourier como base de alguns de seus escritos, e Guillermina Rojas (1848-?), educadora, ligada à Internacional⁷. No Cone Sul Americano, podemos citar as pesquisas sobre Luce Fabbri₈ (1908–2000), Maria Lacerda de Moura⁹ (1887–1995), Isabel Cerruti¹⁰ (1822–1878) e sobre as mulheres que estiveram empenhadas no periódico “comunista-anárquico” La voz de la mujer¹¹, por exemplo; além de outras (pesquisas) que, de alguma maneira, contribuíram e contribuem para a análise de mulheres que, mesmo tendo atuado em prol da emancipação de seu sexo, foram excluídas de uma suposta narrativa oficial do feminismo – que, no Brasil do início do século XX, era compreendido de forma limitada, como sufragismo. Estudos fomentados pela já citada Samanta Colhado Mendes¹², além de outros de autoria de Glaucia Fraccaro ¹³e de Iracélli Alves¹⁴, por exemplo, questionam a pertinência da narrativa feminista que se apoia na metáfora das ondas, sobretudo quando analisamos as manifestações de caráter feminista nos países do Sul Global, como o próprio Brasil. 

E o que isto tem a ver com Maria Antônia Soares e com o livro da Tenda? Parte dos textos assinados por nossa protagonista apresenta a emancipação feminina como temática central – além do mais, o próprio Centro de Jovens Idealistas é uma importante evidência da preocupação de Antônia com relação à situação de suas companheiras trabalhadoras. Na imprensa e em diversas ocasiões, chegou a apontar os limites de uma atuação feminista voltada exclusivamente à obtenção do voto feminino:

A mulher operária deverá fazer verdadeiros sacrifícios para acompanhar o movimento político, pelas grandes dificuldades que tem que lutar. Dedicar-se verdadeiramente à carreira política só o poderão fazer as mulheres da burguesia. As outras deverão conformar-se com empregar os seus sacrifícios em servir-se de ‘degraus’ para que as outras subam ao poder. (O Grito Operário. Ano I, número 7, capa, jan. 1920. No livro, o trecho aparece transcrito na p. 125) 

No mesmo texto, porém, Antônia propõe um novo significado para o feminismo: 

A obra do feminismo, a obra da mulher – os seus próprios sofrimentos, o dizem – está noutra parte. Regenerar a humanidade, transformar-lhe os costumes, salvá-la da decadência física e moral; eis aí a nossa missão. Essa deve ser a nossa obra, edificada pela instrução e educação, e não pela política. (Idem. No livro, o trecho aparece transcrito na p. 124)

Nesta nova caracterização, portanto, ela própria assume o lugar de feminista, convidando outras, como ela (anarquistas, trabalhadoras…), a assumir a missão proposta. Então, ainda que figuras como Bertha Lutz (1894–1976) tenham se sobressaído à época como vozes do feminismo brasileiro do início do século – e, mais tarde, tenham figurado como protagonistas numa narrativa memorialística do movimento –, hoje, quando alargamos a compreensão do que significa ser feminista, podemos (e devemos!) voltar ao passado à procura de outros exemplos de mulheres que, de alguma forma, “desataram nós”, ajudando-nos a chegar até aqui. Assim, Unidas nos lancemos na luta parece dizer mais a respeito das lutas e dos anseios das mulheres do tempo presente, do que sobre os fatos envolvendo as trajetórias de Antônia e Angelina Soares. Resultado do esforço coletivo de suas autoras e colaboradoras, determinadas a partilhar o material bibliográfico das irmãs Soares e suas reflexões sobre o mesmo, o livro é um importante ponto de partida para as pessoas interessadas em se aprofundar no estudo de mulheres anarquistas, mas também para todos, todas e todes que, coletivamente, anseiam lutar por um futuro emancipado.

Notas:

¹ LUDMILA, Aline; ET AL. Unidas nos lancemos na luta: o legado anarquista de Maria A. Soares. São Paulo: Tenda de Livros, 2021.
² PERROT, Michelle. As mulheres, ou, os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005; PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007; PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros, 8. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2018.
³ HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991), 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
⁴ O maior conhecimento sobre Maria Antônia Soares, proporcionado pela leitura de Unidas nos lancemos na luta, despertou-me a vontade de procurar outras informações relacionadas à anarquista. Foi assim que encontrei, nos registros civis da cidade do Rio de Janeiro, disponibilizados na plataforma Family Search, as certidões de óbito de Antônia, Maria Angelina e Pilar Soares. Chamou-me a atenção o fato de Antônia aparecer, no referido documento, como viúva de Manoel Campos – já que este é um indício de que teriam contraído matrimônio civil; o fato de não ter deixado bens; e, sobretudo, a indicação da existência de um filho maior. Procurei mais um pouco, e encontrei a certidão de nascimento do tal filho: tratava-se de Álvaro Raposo (ou Rapozo – as duas grafias aparecem nos documentos) Campos, nascido em 7 de setembro de 1922 – data do Centenário da Independência do Brasil. Com os mesmos apelidos (Raposo Campos), localizei outro registro de nascimento civil: o de Eunice Raposo Campos, também filha de Manoel Raposo Campos e Antônia Soares, nascida em 17 de novembro de 1923. A correspondência entre Álvaro e Eunice e seus pais (Manoel e Antônia) também é confirmada pela informação, contida nos respectivos registros, dos nomes dos avós maternos: José Soares Fernandes e Paula Arias.
⁵ hooks, bell. Ain’t I a woman: black women and feminism. Boston, MA: South & Press, 1981.
⁶ GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
⁷ ESPIGADO TOCINO, Gloria. Experiencia e identidad de una internacionalista: trazos biográficos de Guillermina Rojas Orgis. Arenal: Revista de historia de las mujeres, v. 12, n. 2, p. 255–280, 2005; ESPIGADO TOCINO, Gloria. La Buena Nueva de la Mujer-Profeta: Identidad y cultura política en las fourieristas M.a José Zapata y Margarita Pérez de Celis. Pasado y Memoria. Revista de Historia Contemporánea, n. 7, p. 15–33, 2008.
₈ Ver, por exemplo: Fabbri, Luce. Fascismo: definição e história. Tradução Fernanda Grigolin, Rodrigo Millán e Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro; prefácios Elena Schembri e Gerardo Garay; epílogos Margareth Rago, Ivanna Margarucci e Thiago Lemos; notas Darío Marroche et al. São Paulo: Tenda de Livros, Publication Studio São Paulo, 2019; Montevideo: microutopías, 2019; RAGO, Luzia Margareth. Anarquismo e feminismo no Brasil: audácia de sonhar: memória e subjetividade em Luce Fabbri, 2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007; SCHEMBRI, Elena. Camisas Negras. O fascismo explicado por Luce Fabbri. Verve, 36, p. 26–47, 2019.
⁹ Há, pelo menos desde a publicação da tese de Miriam Moreira Leite, em 1983, diversos estudos relacionados à trajetória e/ou produção de Maria Lacerda de Moura. Destaco alguns livros: MIRANDA, Jussara Valéria. “Recuso-me”! ditos e escritos de Maria Lacerda de Moura. Uberlândia, MG: [s.n.], 2006. LESSA, Patrícia. Amor e libertação em Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Entremares, 2020. Cabe dizer que, em 2018, a Tenda de Livros lançou uma edição fac-símile da terceira edição (1932) do livro A mulher é uma degenerada, de autoria de Maria Lacerda.
¹⁰ Ver, por exemplo: ALMEIDA, Daniela Fernanda de. Isabel Bertolucci Cerruti: trajetória de uma militante política em São Paulo (1910–1937). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, 2019.
¹¹ Ver, por exemplo: BARRANCOS, Dora. Anarquismo, educación y costumbres en la Argentina de princípios de siglo. Buenos Aires: Contrapunto, 1990.
¹² MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas na cidade de São Paulo: 1889–1930. Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual Paulista, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Franca, SP, 2010.
¹³ FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917–1937). Rio de Janeiro: FGV, 2018.
¹⁴ ALVES, Iracélli da Cruz. Feminismo entre ondas: mulheres, PCB e política no Brasil. Tese (Doutorado), Universidade Federal Fluminense, Niteroi, RJ, 2020.



Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*